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O que não conseguimos ver durante um passeio, o que está debaixo da terra ou lá no alto, na copa das árvores, e até o que acontece ao cair da noite. É sobre a força invisível, ou as forças, que alimentam as florestas e outros espaços verdes que nos fala o novo espectáculo da estrutura multidisciplinar Universo Paralelo, uma co-produção com o Museu da Marioneta e as Produções Real Pelágio. Com direcção artística de Adriana Melo e Magnum Soares, Jacarandá convida-nos a viajar até às profundezas da natureza. Depois da estreia na semana passada, com dois dias de casa cheia, o solo intimista – que é também uma ode à arte das marionetas e formas animadas – tem apresentações marcadas no Espaço Cultural BOTA, nos Anjos, a 1 e 2 de Junho, às 11.00, e no Festival Internacional de Marionetas de Ovar, entre os dias 14 a 16.
A semente da ideia foi plantada há dois anos, em conversa com Adriana Melo, que co-assina este espectáculo e que, na altura, projectou a criação de uma peça sobre o universo oculto e misterioso das árvores. Mas só em Novembro de 2023, já com apoios, inclusive da Câmara Municipal de Lisboa, é que Jacarandá começou a tomar forma. A pesquisa, essa, estava feita – viram-se documentários, leram-se muitos textos – e, eventualmente, embrenharam-se na natureza. “Lancei esse desafio à equipa”, revela o bailarino e marionetista Magnum Soares. “Enquanto criador, precisava de estar imerso e senti que o lugar ideal seria a serra da Lousã, que já tinha visitado duas vezes noutros contextos.” Lá, resistem florestas caducifólias de carvalho, apesar das sucessivas denúncias de cortes ilegais de árvores, sobretudo de pinheiros com mais de 30 anos, junto à aldeia do Casal Novo, na zona ocidental da serra.
“Ficámos numa casa de xisto e fizemos várias caminhadas”, acrescenta Magnum. “Foi essencial observar e sentir, para trazer todos esses estímulos para palco, porque eu queria muito que fosse um trabalho sensorial e imersivo, a nível sonoro e a nível visual. Sobretudo porque estamos a falar de um espectáculo sem palavras, em que temos um desafio acrescido e é preciso perceber como passar a mensagem. E acho que isso começa por nós, pela nossa relação com a natureza e pela forma como escolhemos interpretá-la. Eu e a Adriana fomos esboçando a dramaturgia durante esta residência, mas é uma peça que vive muito da experimentação e da exploração de todos os objectos, em particular porque se trata de teatro de marionetas, o que também implica construir tudo aquilo que usamos para contar a história.”
Foram muitas as horas passadas em estúdio, para construir as diferentes marionetas e objectos de cena, desde o bando de andorinhas ao jacarandá que dá nome à peça e que é composto por um tronco e vários ramos de flores que se tiram e põem à vontade do freguês. O resultado é um espanto, sobretudo quando se junta o desenho de luz, a cenografia, que Magnum co-assina com Élio Antunes, a música, original de Duda ♧ Somtopia, e – mais importante – a sua manipulação. É preciso muita maestria, mas o que não falta a Magnum é prática e genuína paixão. Nas suas mãos, as movimentações – e são tantas, mais do que seria possível imaginar se não tivéssemos espreitado os bastidores e descoberto todas as engrenagens – parecem brincadeira de criança. “Só a estrutura cenográfica demorou dois meses a construir”, revela. “Depois temos as marionetas, os objectos, a máscara [usada num solo de dança], que até há um mês ainda não estavam terminados.”
Da Amazónia para Lisboa
A inspiração não veio só do tempo passado na serra da Lousã. Ao que parece, Magnum – que nasceu em Minas Gerais, no Brasil – visitou o seu país natal em Janeiro, a propósito de uma formação em dança tradicional, e aproveitou para encaixar duas semanas na floresta tropical amazónica, que cobre boa parte do Noroeste brasileiro e se estende até à Colômbia, o Peru e outros países da América do Sul. A experiência foi, claro, imprescindível, não só porque o jacarandá é uma árvore originária do Brasil, que cá chegou, Tejo adentro, no início do século XIX; mas também por causa de todo o mito e rito na espiritualidade indígena, a que pediu emprestada, por exemplo, a figura do curupira, um ser mítico que se acredita proteger as florestas e os animais que nelas habitam. “Tivemos uma criança a dizer-nos que era como a mãe natureza, este ser transcendental que protege a natureza.” Tal como o escaravelho que surge no início da peça e que começa a escavar e a enrolar em bolas os excrementos de outros animais, que servem para fertilizar o solo.
Num convite à reflexão sobre os modelos comportamentais e de sobrevivência das árvores, a importância de outros animais, como os escaravelhos, e a nossa relação com o meio ambiente, que é tantas vezes destruidora, Jacarandá revela-se um mergulho no desconhecido, através das cores, texturas e sons da flora e da fauna, e até da expressão corporal do intérprete. “É o primeiro espectáculo sem palavras que criamos. Pessoalmente, pensei nisto em três actos, há um que é quase só como uma instalação sonora, e a ideia é termos este terreno fértil, que o escaravelho fertiliza, e que se vai transformando, com o florescer de diferentes árvores, e que depois deixa de ser natural, com a presença humana, com a fábrica e as casas e até a invasão dos animais domésticos. E há várias perspectivas – o que está em cima e o que está em baixo, o que se vê e o que não se vê –, e várias camadas, umas que os mais novos entendem, outras só acessíveis aos adultos.”
Entre o início e o fim, o contraste é gritante. O verde dá lugar ao vermelho, Magnum não nos poupa. Nem acredita que seja necessário. Uma das suas ambições também é combater a ideia de que o teatro de marionetas não tem profundidade. “As pessoas têm esse preconceito. ‘Ah, vamos ver um teatrinho com bonecos’. Eu não faço isto para a infância, faço isto para as famílias. É por isso que tem várias camadas e é por isso que não tem palavras, para que chegue a todos e para que possamos inclusive circular em festivais internacionais. Mas, se me perguntares, recomendo para pessoas com mais de quatro anos, porque a peça tem 50 minutos e há momentos que requerem uma maior concentração, mas depende muito do miúdo. Já fizemos apresentações para escolas e tem corrido muito bem. Alguns manifestam medo, mas no geral têm gostado muito e fazem muitas perguntas.” Magnum não recusa, claro, a oportunidade de sensibilização: “Tento não ser moralista, até porque acho que a história fala por si, ver tanta beleza e depois ver a sua destruição, é um alerta.”
BOTA, Largo Santa Bárbara, 3D. 1-2 Jun, Sáb-Dom 11.00. Reservas por e-mail (reservas.toca@gmail.com). 5€-8€
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