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"Este filme humaniza-nos". Documentário 'As Fado Bicha' a caminho dos cinemas

Depois dos festivais, o documentário 'As Fado Bicha' chega ao circuito comercial de cinema a 17 de Abril. Falámos com a realizadora e com a dupla Lila Tiago e João Caçador.

Renata Lima Lobo
Escrito por
Renata Lima Lobo
Jornalista
João Caçador e Lila Tiago
©DR | João Caçador e Lila Tiago, no documentário 'As Fado Bicha'
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Parece cedo, mas se calhar já vai tarde. As Fado Bicha é um documentário que acompanha o percurso pessoal e profissional da dupla artística ao longo de quatro anos, mas é também uma história de humanização. Falámos com Justine Lemahieu, a realizadora que deu o pontapé de saída para esta produção e também com as duas artistas que têm lutado pela visibilidade de uma comunidade que ainda é alvo de preconceitos. As Fado Bicha chega ao circuito comercial do cinema esta quinta-feira, 17 de Abril, após ter integrado a Selecção Oficial da secção IndieMusic, no IndieLisboa; a Selecção Oficial do Festival Internacional de Cinema Queer Porto; e ter sido um dos filmes em competição no Festival Internacional de Documentários de Thessaloniki (Grécia).

As Fado Bicha é uma das últimas peças artísticas de uma luta antiga de quem apenas clama por igualdade. Porque os direitos conquistados no papel muitas vezes não se traduzem nas mentalidades. Dar visibilidade, mostrar que todos temos uma história, medos, ansiedades e vitórias é uma das ferramentas de um activismo político que ganha forma nesta produção, imaginada pela realizadora franco-portuguesa Justine Lemahieu, a residir em Portugal há duas décadas. Em 2019, assistiu a um concerto das Fado Bicha, “num bar pequenino”, e ficou comovida “pela beleza, pelo talento e pela força política da performance”. “Senti que tinha à minha frente artistas que mereciam toda a minha atenção, que estavam a mexer com barreiras, com linhas de poder, e que faziam isso com muita coragem, também com muita generosidade, e tive vontade de filmá-las”, recorda à Time Out.

As Fado Bicha
©DR'As Fado Bicha' (Lila Tiago e João Caçador )

A ideia inicial era fazer uma curta-metragem, mas o processo acabou por se tornar longo – e uma longa-metragem se fez. Primeiro, porque sem ajuda para financiar os custos de produção, Justine tinha de se desdobrar noutros trabalhos e filmar aos fins-de-semana, entrando por vezes em conflito com a agenda das Fado Bicha. E depois, uma pandemia aconteceu. “Mas todo esse tempo, além dessas questões de condições financeiras ou da pandemia, acho que também era um tempo necessário, porque eu precisei de muito tempo para pôr em questão o meu próprio olhar”, confessa a realizadora, que quis “partilhar com o público o mais vasto possível essas interrogações e essas descobertas”.

Voltando ao primeiro encontro, Lila Tiago conta como recebeu a proposta. É que, em 2019, as Fado Bicha estavam praticamente a começar e parecia "precipitado a ideia de alguém fazer um filme sobre nós naquela altura". Além disso, não se conheciam e "a ideia de ter uma pessoa sempre a filmar" causava algum desconforto. "Mas depois a verdade é que a Justine deu-nos uma boa vibe e eu lembro-me do João estar a insistir comigo: 'vamos experimentar, se não estivermos muito confortáveis, paramos, não fica escrito na pedra'", lembra Lila Tiago. Não ficou sobre pedra, mas a evolução de Lila e João ao longo destes últimos anos, numa narrativa por vezes pouco linear, acabou por ficar registada, através do olhar de Justine. “Lila e João são pessoas que estão em constante evolução, que estão sempre a interrogar a sua própria identidade. Aconteceu que, e isso não era previsto, acompanhei uma fase da vida da Lila em que ela evoluiu, nomeadamente com a sua identificação de género. E então era muito importante respeitar essa sua evolução e respeitar toda essa coragem que ela teve de afirmar a sua identidade. Por isso, o filme começa pelo fim, afirmando a identidade dela, no feminino”, revela Justine. A realizadora espera que este filme “seja uma ponte que permita valorizar o trabalho das Fado Bicha”, que considera terem “um papel importante hoje em dia na sociedade”, por nos ajudarem a pensar.

Uma ferramenta poderosa

Quando Lila Tiago olha para trás – e pondo de lado as frustrações associadas à demora na concretização de um projecto que reuniu poucos apoios – acha bonito este registo da evolução do trabalho das Fado Bicha e também das suas identidades “na forma como pensamos as coisas”. “É um privilégio que poucas pessoas têm, de poder ter isso documentado”, numa produção que dá apenas visibilidade do seu processo pessoal, acabando por ser um espaço de “visibilidade de um processo de entendimento dentro do universo trans de uma pessoa em Portugal”.

João Caçador sublinha o potencial de humanização deste documentário. “O que ajuda a criar mudança e transformação e o fim dos tabus é falarmos sobre as coisas. E este filme pode ser uma espécie de acesso de muitas pessoas que não estão ligadas ou que não conhecem nenhuma pessoa trans ou não conhecem pessoas LGBT no geral, de poderem conhecer”, defende. “Este filme humaniza-nos, humaniza as pessoas LGBT, cria essa relação humanizada e às vezes é difícil criar essa relação em contextos super rápidos”, sublinha, destacando, por exemplo, “entrevistas ou aparições nos programas de televisão, coisas de cinco, dez minutos”.

As Fado Bicha
©DR'As Fado Bicha'

Por outro lado, acrescenta Lila Tiago “é muito diferente ouvir uma pessoa queer a fazer um discurso político ou a ler um texto de activismo, que é super importante, de ver um filme em que duas pessoas queer falam das suas vidas, das suas dificuldades, das suas famílias, do seu passado, da sua infância ou das suas vontades criativas”, defende. Para a artista, o documentário “resgata uma humanidade que pode não ser acessível a muitas pessoas”, oferecendo um novo olhar, focado no percurso de duas pessoas “que podem ser diferentes de várias formas, mas passam por dificuldades e têm os mesmos recursos, a mesma resiliência, as mesmas vulnerabilidades e isso cria empatia, é uma ferramenta muito poderosa”.

Fora das salas de cinema, as Fado Bicha têm um concerto agendado a 13 de Setembro no Festival Pé Na Terra, em Almancil, Algarve; e em Junho levam a Santiago de Compostela o espectáculo Casa Portuguesa. Está também planeada, ainda sem data, a participação no evento Arte Pela Palestina, na Casa do Comum para a angariação de fundos para Gaza. Recentemente, levaram às redes sociais o tema da falta de inclusão de artistas queer nas comemorações do 25 de Abril. À Time Out, Lila Tiago defende que "a arte queer, a arte feminista, a arte reivindicativa, a arte disruptiva também, é a cereja no topo do bolo de qualquer 25 de Abril". "Numas celebrações do 25 de Abril, eu vou querer ver isso, vou querer ver essa luta no palco, vou querer ver espelhada essa utopia".

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