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Como é que se diz adeus? Como é que se parte sem deixar o que importa para trás? Depois de mais de dez anos a viver na Ilha Terceira, nos Açores, Catarina Ferreira de Almeida, tradutora premiada e autora de várias obras e peças de teatro em parceria com Joel Neto, decidiu voltar à capital portuguesa, onde nasceu e cresceu. Mas a sua chegada, confessa-nos ao telefone, demorou mais do que as duas horas de viagem. “Quando regressei a Lisboa, com a minha cadela, a Jasmim, dei por mim a escrever um livro, que se revelou o resultado de uma grande amizade. Um dia, numa tarde na Costa do Castelo, o Sérgio [Condeço] disse-me ‘olha, acho que tens de ter calma, porque no fundo ainda não chegaste, e eu estou a ver-te ainda com a Jasmim, no meio do Oceano Atlântico, a remar, no vosso pequeno bote”, conta Catarina, que publicou o seu primeiro conto na revista açoriana Avenida Marginal: Ficções e se estreia agora na literatura infantil com O Som das Coisas Leves Quando Caem.
Editada pela Nuvem de Letras, da Penguin, a obra conta a história de uma menina e de uma cadela, a Jasmim, que estão prestes a sair da ilha onde vivem e precisam de lidar com a despedida. Vista de cima, do céu, essa ilha é apenas um ponto minúsculo, mas para quem lá vive é, na verdade, grande como o mundo. E há, naturalmente, alguma relutância em deixar para trás as paisagens, os animais, as pessoas atarefadas e os cheiros, como o do peixe, o da faia-de-terra e até os dos lugares distantes onde nunca se esteve. É preciso, por isso, descobrir o que dá para levar e o que, infelizmente, nunca caberia dentro de um pequeno barco. Caso do mau feitio da menina ou da araucária de 23 metros da Jasmim. “Eu escrevi um primeiro texto por brincadeira e, depois de o partilhar com o Sérgio [Condeço], ele comoveu-se e enviou-o à editora da Penguin, a Joana Gonçalves, que também gostou muito. O único problema foi ser preciso muito mais do que quatro páginas”, revela a autora, entre risos, que aproveitou para fazer os personagens ganhar vida através de tempos mortos. “O tédio faz parte, aqueles momentos em que estamos perdidos e não está a acontecer nada de especial, nem na rua nem na nossa vida.”
O processo criativo envolveu a reconstrução de memórias, de paisagens e de atmosferas emocionais, para a qual Catarina também contou com a experiência de Sérgio, que ilustrou e que também já esteve nos Açores – e a visitara na Ilha Terceira há uns anos. “As ilhas deixam sempre uma impressão – um bocadinho melancólica até – sobretudo para quem não nasceu lá”, diz. “É uma espécie de lugar de exílio. Claro que o ilhéu não sente isto, porque nasce lá e, de certa forma, durante anos, até viajar, quando pode, tem essa sensação de que a ilha é o mundo inteiro. Mas quando sai e, apesar de haver um sentimento telúrico muito forte, como se a relação que o ilhéu tem com a sua ilha fosse quase como uma pessoa que o espera e o esperará sempre, a verdade é que ganha um outro olhar sobre as suas origens.”
Catarina não nasceu numa ilha, mas fala sobre o assunto com propriedade, por causa de um trabalho sobre a diáspora açoriana, que se materializou em Muito Mais do que Saudade, que co-assina com Joel Neto. E, para ser honesta, porque não se sentiu imediatamente em casa ao chegar à sua terra natal. “Tudo me parecia estranho em Lisboa. A minha cidade de repente parecia-me mais irreal do que a ilha onde eu tinha vivido.”
Em O Som das Coisas Leves Quando Caem, a menina e a sua cadela não chegam ao destino. A história termina antes disso, mas há textos adicionais, que são como portas para um possível futuro, onde as vemos, por exemplo, a conversar sobre o que é a tristeza e como podemos escapar dela, a evocar a memória da ilha e até a conhecer um novo amigo. A forma como Sérgio Condeço abordou as ilustrações para esses textos soltos é também ligeiramente diferente. Até aí, as páginas ilustradas são telas inteiras, num registo próximo ao realista, mas algo deformado e pastoso; depois tornam-se mais apontamentos, com esboços e nódoas de tinta, que representam os meses intensos de trabalho. “Quando vi o texto, achei muito bonito e, mais tarde, decidi enviá-lo para duas editoras, mas sem revelar a autoria, porque ela é tradutora e é conhecida no meio, e a Penguin respondeu logo. Depois, para ilustrar, tentei fazer algo nostálgico, com o nevoeiro típico da região”, explica o ilustrador, que trabalhou primeiro com acrílicos e depois com digital. “E tentei imprimir, por um lado, uma certa doçura e, por outro, um ar trágico, com aquele mar imenso, o clima sempre em mudança e aquela sensação de estarmos perante lugares que não deviam ser habitados.”
Agora, com o livro já nas bancas, Sérgio vai de férias e Catarina vai continuar a traduzir ficção e, quem sabe, a escrever também. “Gostava de continuar a história [da menina e da Jasmim] porque o fim está em aberto. E seria um desafio ir ao encontro das personagens no seu lugar de chegada, para explorar esta ideia de que a cidade está em constante mudança, sobretudo numa cidade como Lisboa, que está a atravessar um processo de gentrificação tão intenso”, confessa Catarina. “É muito interessante porque nós, que cá estamos e a conhecíamos quando ela ainda não tinha turistas, temos a sensação de ter perdido as nossas referências: as leitarias, as casas que vendiam chocolates, café e chá, os pequenos comerciantes que eram o ADN de Lisboa há 30 ou 40 anos e que foram fechando portas. E este sentimento não é só nosso. Se formos ler autores como Charles Baudelaire – estou a lembrar-me de As Flores do Mal – já sentimos essa melancolia e a angústia do escritor que escreve sobre a Paris da sua juventude e que já não é a Paris da sua meia idade. E isso faz-nos pensar um bocadinho na realidade de hoje em dia.”
O Som das Coisas Leves Quando Caem, de Catarina Ferreira de Almeida (texto) e Sérgio Condeço (ilustração). Nuvem de Letras. 64 pp. 14,95€
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