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Faltam poucas horas para abrir portas e o ambiente é ainda assim descontraído. A música toca alto no mesmo ritmo frenético com que se limpam e arrumam copos e todo o tipo de loiça. As cadeiras permanecem plastificadas e as mesas por arrumar, tal como no balcão ainda se afinam detalhes. Já na cozinha, anda-se a toque de caixa, sem nunca perder a onda. O caos é só aparente. Quem aqui está sabe o que está a fazer. E nada é maior do que a vontade de dar vida ao Carnal, o gastrobar mexicano do grupo 100 Maneiras, que acaba de nascer no Chiado, no espaço do antigo bar Double 9, do 9Hotel Mercy.
Ljubomir Stanisic anda por aqui, acompanha o processo, mas pouco mais tem a ver com este Carnal. Propositadamente. Não é a sua vez de brilhar. “Isto são os filhos do 100”, diz-nos. “Abrimos um restaurante para eles.” E eles são Manuel Maldonado, chef executivo do grupo e que está habitualmente na cozinha do estrelado 100 Maneiras; Miguel Santos, director de operações; Luis Ortiz, chef de cozinha; e João Sancheira, chefe de bar.
“Eu já ando há três anos a dizer que quero abrir um mexicano. Sou perdido por taquerias. Sempre foi uma paixão minha. Adoro picantes, gosto de comer, gosto de partilhar, de ter shots de tequilas metidos ao barulho. É esse o meu estilo de refeição”, conta Miguel, lembrando que na altura ainda Luis Ortiz, mexicano, não tinha chegado ao grupo. “Quando estávamos a preparar a abertura do 100, o Luis começou a cozinhar restos de experiências que íamos fazendo e percebemos que, para além de cozinhar muito bem e de liderar as equipas, tinha uma mão para a cozinha mexicana incrível. E o Miguel já tinha dito que devíamos abrir [um restaurante mexicano]”, acrescenta Manuel Maldonado.
Ao terceiro dia de portas abertas, estão todos no Carnal. Se há nervosismo, não se nota. A música continua alta e dita a experiência que se quer descontraída – uma e outra vez damos por nós de volta do Shazam a tentar perceber o que se ouve, ritmos latinos de Dengue Dengue Dengue, Jaja ou Umoja. Não é um detalhe, muito menos um adereço. É parte essencial do que é este Carnal, um gastrobar com uma forte componente artística. A decoração foi entregue a Carlito Dalceggio, artista nascido no Canadá e com carreira feita um pouco por todo mundo. Até aqui o grupo se atreveu. Carlito faz muita coisa, de galerias de arte ao Cirque du Soleil ou a festivais como o Burning Man, mas restaurantes não é uma delas. “Sou um artista visual. Fiz algumas discotecas quando era novo, mas faço mais exposições e a minha própria arte. Só que, quando me encontrei com eles, senti que podia ultrapassar os limites e criar de alguma forma uma nova linguagem”, explica Carlito.
Ao artista foi dada liberdade total e aos poucos tudo se transformou. A estrutura de iluminação que percorria o bar que ali existia, e que continua a existir no lobby do hotel na porta ao lado, passou a ganhar a forma de uma serpente azteca. Na entrada, há uma espécie de portal inspirado no papel picado do México e que à noite é iluminado por videomapping. Nas paredes há pinturas, jogos de luzes e um led onde se lê “Libre” – um statement assumido por todos. As almofadas dos sofás foram pintadas à mão e até as t-shirts usadas pela equipa foram pintadas por Carlito, que conhece muito bem o México, onde viveu durante uns anos. “Pensei que podíamos criar uma experiência que fizesse cair as fronteiras entre arte e restaurante”, afirma. Para o artista, “a arte é uma experiência, é muito táctil, e a comida é isso”. “A ideia não era tanto pegar nos clichés, mas nos arquétipos da mitologia real”, acrescenta, acreditando ter criado uma experiência imersiva, “um microcosmos”. “Aqui tudo é possível, não há hesitação, não há medo, nem recusa. O ego e os problemas ficam à porta para se entrar num mundo mágico.” Palavra de artista.
“A ideia inicial era muito simples, uma taqueria, mas de repente já estávamos num gastrobar porque não conseguimos fazer nada simples”, brinca Miguel Santos, defendendo que é a presença de Luis Ortiz que vai fazer a diferença. Pouco adianta a experiência se a comida não for boa. E aí não há dúvidas: “É aquela pessoa que está na cozinha que é o nosso ponto alto”. “O problema da comida mexicana em Portugal, ou da japonesa ou da francesa, é que tentamos fazer esse tipo de comidas com os nossos produtos e isso não é possível.”
Luis Ortiz, que conhece os dois países, explica de forma simples: “Uma cebola aqui não sabe igual a uma cebola no México, ou um tomate daqui não sabe igual. Fizemos um imenso esforço na procura dos ingredientes que queremos. Por exemplo, demorei quatro meses à procura de malaguetas, no México, em Espanha, na Alemanha. E quando falo de malaguetas, falo das tortilhas, falo de imensas coisas que precisamos para o menu.”
Feliz no 100 Maneiras, o chef não esconde que abrir um restaurante mexicano em Lisboa era um sonho. “Quando cheguei a Portugal fui a dois restaurantes, no máximo, na loucura, a três, e nunca mais voltei a nenhum. Eu tinha saudades de comer comida mexicana, mas nunca mais voltei nem nunca mais tentei”, diz. “Algum dia, quando conseguir, farei diferente”, pensava Ortiz. É o que procura agora fazer no Carnal. O que havia para testar já foi testado, garante. Se não fosse do seu agrado, ou do resto da equipa, não seria servido. Há pratos clássicos que se esperam num mexicano e outros que “não têm nada a ver com o tradicional”. E há receitas de família, como o flan de la abuela (5€), que Luis acredita que darão nome ao Carnal.
Mas comecemos por onde é suposto começar a refeição e deixemos os doces para o fim. Por aqui há várias formas de se aventurar, começando devagarinho pelo guacamole con chicharrón o totopos y chileajo (6€) ou o chicharro braseado con chintextle de mariscos, ceviche en salsa tabasco y emulsión de jalapeño y pollo (9,5€), passando para as quesadillas – e esqueça tudo o que sabe sobre quesadillas porque será surpreendido por estas, como a de leitão (6€).
Os tacos são uma aposta forte, e serão servidos mesmo depois de a cozinha fechar, até às 02.00. Há cinco: camarão (13€), cogumelos (10€), vaca (10€), frango (9,5€) e porco (9€). Por fim, os pratos principais, pouco habituais por cá, como é o caso do tamal relleno de patata, espinacas y queso, mole y crujiente de plátano verde (13€), ou do kit do it yourself – chamamos-lhe nós – em que os ingredientes (carnitas de lechón, salsa borracha, salsa verde, pickles, frijoles con pico de gallo y chicharrón) vêm para a mesa para que faça os seus próprios tacos. “O mais importante para mim é dar um produto final real e não uma versão que não é a verdadeira”, diz Luis.
Para acompanhar, como seria de esperar na família 100 Maneiras, há bons cocktails. “96%, talvez, da nossa garrafeira [é composta por] tequila, mezcal e alguns produtos mexicanos como licores e um whisky mexicano. Em termos de apresentação tentamos trabalhar ao máximo com o mais tradicional no México”, conta João Sancheira, responsável pela carta de bar, onde se bebe, por exemplo, um cocktail surpreendente feito com Don Julio Blanco, beterraba e bolbo de aipo (10€). “A ideia é ser tudo muito fresco, nós sabemos que a comida vai ser picante e ter alguma gordura, por isso queremos algo que alivie e refresque”, explica. “O Bistro cresceu nas costas da coquetelaria, por isso temos de continuar e expandir isso para os nossos outros projectos”, acrescenta Miguel, para quem todos os restaurantes do grupo têm de ter um bocadinho de cada um. “É o que faz os nossos restaurantes serem o que são.”
Maldonado resume: “O Carnal é esta maluquice toda, boa música, bom ambiente, comida sempre incrível e cheia de sabor, e bons cocktails”. “É isso que o 100 Maneiras é – até à abertura do Carnal era uma coisa muito virada para o Ljubo, para a vida dele, e neste momento estamos a tentar diversificar um bocadinho, sabemos fazer as coisas e queremos mostrar que temos capacidade para fazermos coisas diferentes.”
Rua da Misericórdia, 78 (Chiado, Lisboa). Seg-Sex 18.00-02.00, Sáb-Dom 13.00-02.00