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“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.” É este artigo, o primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptada pela Organização das Nações Unidas em 1948, a dar o mote para o parlamento que ocupará o LU.CA – Teatro Luís de Camões – filmado e projectado em tempo real, de 19 a 29 de Outubro. Entre momentos caricatos e epifanias, com câmara e realização de vídeo de Lúcia Pires e Mariana Guarda, o novo espectáculo de Teresa Coutinho, Peço a Palavra, instiga-nos a aprofundar a nossa noção do outro, do direito a existirmos nos nossos próprios termos e do dever de nos respeitarmos e às nossas especificidades. A estreia para as famílias acontece no sábado, dia 21, às 16.30, e é provável que nos convença a ir para a rua em protesto.
“Este espectáculo começa como um outro que já fiz há muito tempo, O Eterno Debate [que é possível rever na RTP Play, onde estreou no final de 2018, antes de subir ao palco do CAL, em 2020]. Na altura, pouco depois de o apresentar, achei que tinha potencial para ser adaptado para adolescentes, porque me interessava essa ideia de encenar um programa, colocando no formato o tema que me apetecesse explorar”, conta-nos a encenadora, que fez a proposta à directora artística do LU.CA, Susana Menezes, mas viu os seus planos furados pela pandemia. Só agora, no âmbito de um ciclo dedicado aos Direitos das Crianças, que arrancou em Setembro e se prolonga até ao próximo mês de Novembro, Peço a Palavra verá finalmente a luz do dia, em cinco sessões para escolas e quatro para famílias com crianças a partir dos 12 anos.
Em palco, a política é chamada a aproximar-se dos jovens que, num futuro não muito distante, em 2030, saem às ruas para reivindicar a verdadeira aplicação do único documento comum a todas as nações. Mas, entre cinco representantes políticos, nenhum deputado nem nenhuma deputada parece importar-se com pouco mais do que a sua própria imagem. Nem mesmo o crescente descontentamento ou os mais recentes tumultos os impedem de tornar o que deveria ser uma reunião extraordinária num autêntico circo, daqueles que às vezes se vê na televisão, na Assembleia da República, por exemplo (referências a momentos da política portuguesa não faltam).
Entre picardias, medição de forças e muita demagogia, de preferência para a câmara, as preocupações dos cidadãos e das cidadãs – ou, como se ouve dizer, de “um bando de canalhada com tempo a mais” – vão ficando por responder. As assimetrias, as alterações climáticas, as guerras, as discriminações, as crises, as mentiras, a injustiça de tudo isso.
“Como estamos a falar para pré-adolescentes e adolescentes, achei que faria mais sentido falarmos de direitos humanos [em vez de focar apenas nos Direitos da Criança], porque tem a ver com uma faixa etária, sem querer estar a generalizar, em que nos projectamos mais no futuro. Pensamos no adulto que vamos ser, pensamos já nos nossos pares, nas nossas questões identitárias, na nossa relação com a família, ou seja, acho que o nosso lugar em vários contextos colectivos começa a ser mais evidente, e foi o que quis trabalhar”, continua Teresa Coutinho. “Tivemos uns primeiros dias de discussão, de mesa, e depois eu vou escrevendo à medida que vamos ensaiando, o que permite uma troca muito imediata e muito viva com os intervenientes e as intervenientes – não estou a falar só dos intérpretes, mas também de toda a equipa criativa.”
Se havia vontade de celebrar a Declaração dos Direitos Humanos, rapidamente se percebeu que ainda há muito por fazer, para que de facto tenha aplicação. Teresa não quer descredibilizar nem as Nações Unidas nem o documento, muito pelo contrário, mas acredita que, tal como uma das personagens diz, “o trabalho ainda está por averiguar”. “Aquilo que foi sendo cada vez mais palpável no processo é que nós gostávamos de transmitir a este público que são eles, no fundo, quem tem o poder de fazer alguma coisa.” Mas a verdade, Teresa faz questão de nos relembrar, é que já todos fomos jovens e que, enquanto adultos, tendemos a esquecer-nos dessa posição e facilmente nos deixamos corromper pelo poder. É, aliás, isso que a segunda parte do espectáculo, espoletado por um comunicado emitido pelos Jovens pela Equidade, nos vai mostrar através de uma viagem ao passado das deputadas e dos deputados. Mas mais: é também nessa viagem que esses deputados e essas deputadas se revelam humanizados, os seus contextos cheios de nuances e, quem sabe, a possibilidade de um rebate de consciência.
“O lugar do poder está desfasado da realidade. É importante começar a fazer estas reflexões na adolescência. Quando o elenco [Alice Azevedo, Ana Valentim, Catarina Rôlo Salgueiro, Lúcia Pires, Mariana Guarda, Rafael Gomes e Roberto Terra] volta à formação inicial [há um enquadramento que se repete de forma muito semelhante no princípio e no fim do espectáculo], é como se estivéssemos a olhar para moldes que é preciso quebrar”, aponta, antes de revelar que não faltam referências biográficas. “É uma forma de tornar o texto deles [das e dos intérpretes], se reverem e reverem as suas questões. É também uma tentativa de reflectir aquilo que me parece que são, muitas das vezes, as interrogações dos adolescentes. Ouvimos algumas pessoas adolescentes quando estivemos a preparar o espectáculo. Gravámos duas adolescentes a dizerem comunicados, e há aqui também, não vou mentir, uma certa vontade minha de espicaçar estes jovens para se politizarem.”
A questão é, se nascemos todos iguais, como diz o artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, então como é que há uns que nascem para a guerra e a morte quase certa e outros, como diz uma jovem manifestante, em berços de ouro? Sem descurar a força do humor, que está bem presente no espectáculo, Teresa Coutinho não nega a complexidade da problemática e a urgência que há, sempre houve, em debatê-la de forma honesta e activa. “É um olhar meu e de muitas outras, pensarmos que as diferenças não têm de ser motivo de afastamento, de repulsa, mas sim de questionamento, de reflexão, de aproximação. Muitas vezes faço essa autocrítica, ‘caramba, estou a julgar determinado tipo de discurso, mas nem sequer me permito discutir com esta pessoa’, e essa é uma questão que se vive muito hoje em dia. Como é que pólos tão afastados entram em diálogo para que não se crie um fosso que resulte numa catástrofe? Também não sei. Eu própria tenho imensas dúvidas e imensas falhas, mas é crítico que tenhamos este pensamento, que nos perguntemos como é que criamos uma sociedade que aproxime.”
LU.CA – Teatro Luís de Camões. 21-29 Out, Sáb-Dom 16.30. 3€-7€
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