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Como descolonizar as artes? Como retratar o passado colonial? E como criar para o futuro? São algumas das questões levantadas em “Europa Oxalá”, a exposição que chega esta sexta-feira, 4 de Março, à Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Com curadoria de António Pinto Ribeiro e dos artistas Katia Kameli e Aimé Mpane, a mostra é uma das grandes apostas da temporada, ficando patente até 22 de Agosto.
No catálogo que acompanha a exposição, António Pinto Ribeiro, um dos comissários e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, escreve que “não haverá processo de descolonização dos museus se não houver um processo de descolonização do mundo”. Até lá, o caminho faz-se dentro de uma galeria em que as paredes envidraçadas nos convidam a olhar para o exterior. “A arte está no mundo, não está fechada em nenhuma caixa branca”, justifica o curador numa visita guiada, que arranca com Dada (2018), uma escultura de Sabrina Belouaar em que dois punhos parecem prestes a soltar-se de um cinto. “A gramática desta instalação é bastante simples, mas muito directa e forte”, assinala Katia Kameli, artista e comissária, que destaca “a conversa entre as gerações que estamos a juntar e as diferentes estéticas que os artistas estão a trazer”.
No total são 21 artistas, com diferentes linguagens, todos criados num contexto pós-colonial, muitos com origens familiares no continente africano. Aimé Mpane, Aimé Ntakiyica, Djamel Kokene-Dorléans, Mohamed Bourouissa, Kati Kameli ou Sara Sadik são alguns dos artistas afro-europeus com obras presentes na exposição que ocupa a galeria principal do edifício sede da fundação.
“Há artistas que não tendo nenhuma experiência biográfica relativamente a África, não tendo pais nem avós nem familiares, contudo, os seus trabalhos sobre as questões pós-coloniais fizeram com que eles se aproximassem destes temas. Há artistas que não têm nenhuma afiliação africana nem são afro-europeus, contudo são determinantes”, esclarece António Pinto Ribeiro, que quis desmontar a ideia “racista de que os artistas afro-europeus trabalham apenas a partir do artesanato”. A diversidade dos meios prova-o: a artista francesa Sara Sadik, por exemplo, apropria-se do formato dos videojogos para criar uma história de amor dos tempos modernos, em Khtobtogone (2021).
Em “Europa Oxalá”, o presente e as vivências misturam-se com as memórias, apelando à urgência de pensar uma Europa pós-migratória. As obras “têm esta dimensão das linguagens europeias artísticas e, ao mesmo tempo, a expressão das memórias, daquilo que de alguma forma herdaram de formas difusas dos seus pais e avós”, explica.
Reconhecendo a importância do passado para repensar todas estas questões, os três comissários da exposição, que já passou pelo MuCEM (Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo), em Marselha, França, e depois de Lisboa seguirá para o Africa Museum, em Tervuren, na Bélgica, querem ressalvar a importância de mostrar, mais do que um novo olhar sobre o passado, um olhar que pousa também no futuro e num mundo acelerado.
Entre as 60 obras da mostra está um globo terrestre iluminado em movimento. “Quando mostramos um globo a uma criança, o que é que ela faz? Gira-o. Isto é uma forma infantil de ver o mundo”, descreve o autor, Fayçal Baghriche. Aqui, não é preciso infligir força para fazer a Terra andar às voltas. A obra, Souvenir (2009), gira graças a um motor no seu interior, a uma velocidade que esbate as cores e dilui as fronteiras entre países. “Só vemos o globo enquanto planeta azul”, descreve o artista argelino residente em Paris que, com esta peça, procura também “mostrar o mundo como ele é agora, com conexões entre as nações, transporte, a forma como tudo anda muito rápido, tal como a sociedade em que vivemos hoje”.
“Recusei-me a expôr as imagens das demolições”
Fotografias de objectos aleatórios ocupam uma das paredes da galeria: um sapato, uma carteira, uma cassete, uma ventoinha. A artista portuguesa com origem angolana Mónica de Miranda assina Contos de Lisboa (2020), um conjunto de imagens de objectos recolhidos junto à Estrada Militar, onde populações africanas se instalaram depois da ditadura.
“O Arquivo Fotográfico de Lisboa convidou-me a expôr as fotografias que eu tinha documentado de alguns bairros que tinham desaparecido. Ou seja, há uma cidade que já não existe: 6 de Maio, Azinhaga dos Besouros, tenho fotografias de uma cidade que já não encontramos. Recusei-me a expôr as imagens das demolições e tudo aquilo que as pessoas geralmente querem ver, a imagem de pobreza, onde as populações africanas moram”, explica. A artista, investigadora e professora optou por olhar para o seu próprio arquivo. “Como uma arqueóloga, fui buscar os restos que tinham ficado para trás. A memória de um lugar baseada em factos concretos”, remata.
Fundação Calouste Gulbenkian. Edifício Sede – Galeria Principal. 4 Mar-22 Ago. Qua-Seg 10.00-18.00. 5€
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