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O repórter de poupa loira é a sua maior criação, mas há mais além de Tintim na exposição dedicada a George Remi (1907-1983), conhecido como Hergé, que chega agora à Fundação Calouste Gulbenkian. Ana Vasconcelos e Nick Rodwell são os curadores da mostra organizada em colaboração com o Museu Hergé, na Bélgica, que detém 85% dos originais do homem que deu vida ao terrier branco Milou, ao capitão Haddock ou aos gémeos Dupond e Dupont.
Mas não é só de Tintim que se trata, e isso é evidente logo à entrada da exposição, dividida em nove núcleos que exploram diferentes fases da vida do autor e desenhador de banda desenhada belga. Hergé começa, em termos cronológicos, pelo fim, com a capa do jornal francês Libération de 3 Março de 1983, dia da morte do ilustrador, e quase sem banda desenhada. Nas paredes, em vez de desenhos, estão quadros de Serge Poliakoff, Tom Wesselman, Jean Dubuffet. George Remi terá tentado ser pintor, conta a curadora Ana Vasconcelos, numa visita guiada à imprensa, mas não terá ficado impressionado ou sequer orgulhoso para assinar os seus quadros. “A banda desenhada é a minha única forma de expressão. Que mais tenho à minha disposição? A pintura? É preciso dedicar-lhe uma vida. E como só tenho uma – e já bem avançada –, tenho de escolher entre a pintura e Tintim, não as duas coisas! Não posso ser um ‘pintor de fim semana’, é impossível!”, lê-se numa das citações de Hergé na parede da mesma sala. Remi acabou por manter a proximidade dessa área artística enquanto entusiasta e colecionador, investindo numa coleção de arte moderna que constitui um dos núcleos da exposição e que inclui um de quatro retratos de Hergé da autoria de Andy Warhol. Nick Rodwell, que gere o património do autor belga, espera um dia conseguir reunir os quatro exemplares em Bruxelas.
Também a sua faceta de publicitário, praticamente desconhecida do grande público, tem direito a um núcleo expositivo no edifício sede da Gulbenkian. Há uma sala repleta de grandes cartazes produzidos pelo L’Atelier Hergé-Publicité, nos anos 30.
Estes dois exemplos mostram que o autor não se cinge à criação da famosa personagem de BD, o que não quer dizer que grande parte da exposição não seja sobre Tintim. É – para felicidade dos fãs do personagem. Aliás, basta recuar ao exterior do Museu, onde se passa por um enorme foguetão vermelho. Já de volta ao interior da Gulbenkian, há pinturas, fotografias, desenhos, e documentos reveladores sobre a evolução do processo de construção de todas as aventuras de Tintim. Há também uma parede com um mural de álbuns, nas suas múltiplas traduções. Os curadores alertam para o facto de, quando a exposição passou por Xangai, China, este mural não incluir a edição do livro Tintim no Tibete.
A par da exposição, que fica patente até Janeiro de 2022, estão programadas conversas com o historiador António Costa Pinto. O Ciclo “Hergé no mundo contemporâneo” inclui, por exemplo, a 12 de Novembro, às 18.00, uma conversa entre António Cabral e António Araújo sobre Hergé e o Portugal do Estado Novo. “A contextualização do que foi toda a ligação com a publicação do Tintim e do Hergé num contexto específico de um país que estava a atravessar uma ditadura, que não entrou na guerra. A colocação de Portugal neste contexto internacional é fundamental”, diz Ana Vasconcelos.
As Aventuras de Tintim em 2021
As leituras contemporâneas das peripécias de Tintim têm motivado o debate nos últimos anos. No álbum Tintim no País dos Sovietes, Hergé é acusado de anticomunismo. Em Tintim no Congo, a crítica é à forma como este pode estar a romantizar o colonialismo europeu, retratando a população africana de forma ofensiva e com base em estereótipos.
Em 2007, na África do Sul, a editora das Aventuras de Tintim no Congo recusou-se a publicar a tradução do livro em africânder, uma das línguas oficiais do país, e a versão inglesa ganhou um aviso de conteúdos possivelmente ofensivos. No mês passado, a polémica reacendeu com a notícia de que algumas escolas no Canadá queimaram livros do Astérix e do Tintim, classificados como “desactualizados e inadequados”, pela forma como representavam os povos indígenas canadenses. Nick Rodwell arruma o assunto: “As Aventuras de Tintim são uma enciclopédia do século XX. É isso”. “Na China disseram-nos que não podíamos mostrar Tintim no País dos Sovietes. É anticomunista. Aqui em Portugal têm uma democracia, por isso estamos muito felizes por poder mostrar todo o trabalho de Hergé. Para nós, não há diferença entre os álbuns Tintim na América, Tintim no Congo, ou qualquer outro álbum”, diz.
Em Portugal, as críticas de racismo ou colonialismo não têm particular destaque na exposição. “Muitas vezes criticado pelo seu cariz colonialista, Hergé retrata sobretudo a mentalidade do seu meio e do seu tempo”, lê-se no texto que acompanha algumas pranchas de Tintim no Congo, numa das salas.
Reconhecedo a polémica, tanto Nick Rodwell como Ana Vasconcelos consideram que não há motivo para “cancelar” o autor ou a personagem em 2021. “Cada país tem as suas ideias estranhas e cada país tem a sua história cultural. Tudo o que Hergé fez foi inspirar-se no que estava à sua volta. Por isso a forma como trata o Congo ou outros países da América do Sul é como toda a gente vivia naquele tempo. Acho muito importante que as pessoas no Quebeque parem de queimar os livros de Tintim porque não faz muito sentido. Os livros são sagrados e não se queimam”, diz Nick. Lembrando que, em Portugal, Tintim no Congo chegou a dar a vez a Tintim em Angola, Ana Vasconcelos opina: “Estes países que tiveram colónias, como nós e a Bélgica… No fundo estamos sempre a gerir esse passado, e é muito importante não fechar portas. É muito importante não estimular o ódio e a agressividade, mas sim a compreensão, a amizade e o entendimento.”
Fundação Gulbenkian. Edifício Sede – Galeria Principal. 1 de Outubro a 10 de Janeiro de 2022. 5€