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1981. José Saramago ainda não era um Prémio Nobel, mas já tinha publicado três romances, dois contos, três livros de poesia e uma peça de teatro. E já tinha percorrido o país de lés a lés para escrever Viagem a Portugal a convite do Círculo de Leitores. Agora, a Porto Editora lança uma edição especial, que coincide com o início das comemorações do centenário do nascimento de Saramago e inclui todas as fotografias que o autor tirou ao longo desta viagem, quase todas inéditas. A edição acrescenta ainda imagens de Duarte Belo.
“Esta Viagem a Portugal é uma história.” Em 1999, sobre a sua prosa e num texto que pode ler após o prefácio, Saramago escreveu que neste livro se propôs abandonar “a rotina dos guias turísticos e dos mapas comuns”, numa edição “que tivesse como único roteiro a história e a cultura” do seu país. Nesse quase virar de século, um ano após ter recebido o Prémio Nobel da Literatura, Saramago disse que algumas das coisas que descreve em Viagem a Portugal “ou deixaram de existir, ou não são já, à primeira vista, reconhecíveis. Transformaram-se as paisagens, os urbanismos e as arquitecturas, alteraram-se os gostos e os modos de vida”. Não sabemos que análise o escritor faria em 2021, mas sugerimos que continue a seguir este “viajante”, até porque muitos pontos de paragem ainda estão de pé. “Levado pela mão, não se perderá no caminho.”
Volte a descobrir Lisboa
Museu de Arqueologia e Etnografia
“O viajante disse e cumpriu: mal entrasse em Lisboa iria ao Museu de Arqueologia e Etnografia à procura da falada coleira usada pelo escravo dos Lafetás.” No capítulo “Às portas de Lisboa”, o viajante inicia o roteiro num museu que hoje está dividido em dois, o de Arqueologia e o de Etnologia. Do objecto que ainda faz parte da colecção do Museu de Arqueologia e que quis ver com os seus próprios olhos, o autor diz, com evidente inquietação: “Esta coleira é mesmo uma coleira, repare-se bem, andou no pescoço dum homem, chupou-lhe o suor, e talvez algum sangue, de chibata que devia ir ao lombo e errou o caminho. Agradece o viajante muito do seu coração quem recolheu e não destruiu a prova de um grande crime.”
Museu de Arte Popular
“É um refrigério”, descreve o viajante, referindo-se à frescura do espaço onde entrou para “sacudir do espírito as teias de aranha” – tinha passado antes pelo Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém. O Museu de Arte Popular, criado para a Exposição do Mundo Português de 1940, viu o seu acervo – recolhido por António Ferro durante o Estado Novo – ser transferido para o Museu Nacional de Etnologia, onde está exposto em reservas visitáveis, e hoje faz-se valer de exposições mais pequenas. Mas em 1981, Saramago sugeria que a colecção se dividisse entre os temas de Arte Popular e Trabalho, de forma a “tornar mais visíveis as ligações entre trabalho e arte, mostrar a compatibilização entre o artístico e o útil, entre o objecto e o prazer sensorial”.
Museu Nacional de Arte Antiga
“Cada visitante tem direito a escolher, a designar o mais belo quadro do mundo, aquele que a uma certa hora, num certo lugar, põe acima de todos os outros.” Antes de entrar num dos grandes museus do país, o viajante sublinha que o mais belo quadro do mundo está em Siena, Itália. Uma pequeníssima paisagem de Ambrogio Lorenzetti. Mas, defende, neste museu português não faltam outros dos mais belos. É o caso dos Painéis de São Vicente de Fora, de Nuno Gonçalves, das Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch, ou de O Martírio de São Sebastião, de Bernardo Martorell, num museu que preferia que se chamasse Museu das Janelas Verdes, um “bem mais belo nome”. Numas páginas mais à frente confessa que preferia que o Teatro Nacional D. Maria II se chamasse Teatro Almeida Garrett, o grande impulsionador da sua construção.
Viagem a Portugal. Porto Editora. pp 763. 36€
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