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João Vidal vira em África. O jovem engenheiro vai à guerra porque decide ir à guerra. Ao contrário dos outros rapazes da sua idade, não é obrigado. É filho de boas famílias, há expedientes. O pai é director da PIDE, há-de ir a secretário de Estado da Defesa. Mas João não vai por estar alinhado com a ideia de império do Estado Novo. Não. Vai porque quer ver com os próprios olhos o que se passa no Ultramar. Para ele, Cabinda. Vai e, quando volta, vem do avesso – política e emocionalmente. Encontra duas soluções para a nova situação em que se encontra: o álcool, como tantos outros, e o Partido Comunista Português, como outros tantos. Mais tarde, na altura em que o conhecemos, em Lisboa, já o KGB o recrutou como agente secreto a operar nos salões – isto é, no coração – da ditadura. João arranja então forma de ser contratado para a RARET, um centro retransmissor gerido pelos EUA na pequena localidade de Glória do Ribatejo, de onde a Rádio Europa Livre era emitida para lá da Cortina de Ferro. Tem uma missão: descobrir o que aconteceu a Mia, também ela uma espiã do KGB, ali destacada como telegrafista, que desapareceu sem que americanos, soviéticos ou portugueses lhe conheçam o rasto. É este o ponto de partida para a primeira série portuguesa da Netflix, Glória, que se estreia nesta sexta-feira, dia 5.
A história à volta da ficção é real. A RARET funcionou durante cerca de meio século, sob o comando não declarado da CIA. Os escombros estão lá para serem vistos, tal como os da aldeia construída nas imediações para albergar os americanos. Esta última foi reabilitada (o bastante) para acolher a rodagem da série. A RARET, não (embora tenham sido lá feitas umas cenas, à laia de local secreto, era demasiado grande para filmar e foi um antigo centro de onda curta da RDP, em Pegões, a fazer-lhe as vezes). Um lugar secreto de que Pedro Lopes, o criador da série, ouvia os adultos falarem quando era miúdo, entre relatos da Volta a Portugal em Bicicleta e do Festival da Canção. A família trabalhava na Emissora Nacional. Há quase década e meia como director de conteúdos da SPi, o argumentista já fez de tudo, mas guardou a ideia de mergulhar nesta história até encontrar o “ambiente certo” para a desenvolver, como nos disse recentemente. Isto é, até que pudesse fazer uma série sem olhar a meios. Encontrou-o na Netflix, à qual fez o pitch com a RTP como co-produtora. Tiago Guedes foi chamado para voltar a realizar no Ribatejo após A Herdade.
Glória passa-se na década de 1960. A Guerra Fria divide o mundo e Portugal, afinal, não era tão neutro nem tão só como se dizia. Desempenhava um papel, dispensando território para dois centros operacionais estratégicos para os EUA: a RARET e a Base das Lajes. Victoria Guerra, que dá corpo a Mia, acredita que este cruzamento com a realidade terá impacto junto dos espectadores. “Acho que vão gostar, acho mesmo. Porque junta o lado da espionagem, de que o público gosta no mundo inteiro, e o lado histórico, que é super importante hoje em dia, para as pessoas não se esquecerem”, afirmou à Time Out. Miguel Nunes, que interpreta o protagonista, também se sentiu atraído por aquele tempo: “Fiquei muito entusiasmado com a ideia deste projecto desde os castings. Comecei a envolver-me bastante com a história do personagem, com o caminho que ele estava a fazer e com todo este momento político, porque é uma fase muito determinante também para aquela que vivemos hoje, o período dos anos 60 e dos anos 70, mais tarde com a Revolução de Abril”.
Não é uma série panfletária. “O ponto de partida era meio perigoso, porque estás a falar da CIA e do KGB, e então já está polarizado de alguma forma. Mas o João é exactamente esse centro [que procurámos para a história]. Começa de um dos lados, e a sua progressão leva-o para lado nenhum”, explica-nos Tiago Guedes. Se era difícil manter a equidistância em relação aos agentes do exterior, mais difícil era face à ditadura portuguesa. No entanto, nos quatro episódios que a Netflix disponibilizou à imprensa (de dez), as idiossincrasias do Estado Novo são representadas com subtileza, amiúde sem enquadramento nem explicações. As personagens agem com naturalidade diante do que era normal. A posição subalterna das mulheres é disso bom exemplo, seja na cúpula da RARET (para português ver), seja no carácter instrumental que algumas delas tinham para rapazes em idade de serem mobilizados para a guerra (casando com eles, para os retirar da linha da frente) ou no terror da violência doméstica. Carolina Amaral, Leonor Silveira, Sandra Faleiro, Joana Ribeiro e Stephanie Vogt são algumas das mulheres no elenco, juntamente com Afonso Pimentel, Adriano Luz, Marcello Urgeghe, Adriano Carvalho, João Arrais ou Matt Rippy. O primeiro a surgir no ecrã é, todavia, outro. Um convidado: Tiago Rodrigues. É uma surpresa a abrir e mais uma pena no chapéu do encenador e futuro director do Festival d’Avignon.
Netflix. Sex (Estreia T1)
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