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Há cada vez mais baratas em Lisboa. Estamos condenados a viver com elas?

Períodos mais longos de temperaturas altas significam mais tempo de baratas entre nós. Ao mesmo tempo, o uso de químicos tem-nas tornado mais fortes e a gestão do lixo nas cidades não ajuda.

Rute Barbedo
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Rute Barbedo
Jornalista
Baratas americanas
ShutterstockBaratas americanas
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Chegado o final de Agosto, Luísa Moura, residente em São Domingos de Benfica, estava farta. “Fizemos três desinfestações este ano e elas continuaram a aparecer. O técnico disse que devem ter vindo de outro lado, novamente. Não sei por onde entram. O que sei é que, passado um tempo, lá aparece uma na cozinha ou no corredor.” O relato não é único e as baratas, para um lisboeta, estão longe de ser novidade. O que há de novo é que elas estão mais resistentes, aparecem cada vez mais cedo no ano e prolongam-se nas estadias entre nós, humanos.

Há cinco anos, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) falava ao Expresso de uma “diminuição do número de queixas”, relacionado, na altura, “com o esforço de controlo de pragas desenvolvido pelos serviços municipais”. Em Setembro, a Time Out pediu à autarquia dados relativos ao número de pedidos de intervenção e às acções de controlo de pragas, mas não obteve resposta. Restam as queixas dos trabalhadores do Serviço de Controlo Integrado de Pragas, que em Abril saíram à rua para pedir melhores condições, deixando a nota: “Estamos a falar de 16 trabalhadores que têm de conseguir cobrir toda a cidade. Lidam com pragas como ratos, baratas, pombos e abelhas, por exemplo. Este é um número claramente insuficiente para uma cidade como Lisboa.”

A cidade, o clima, o ecossistema e os aparelhos genéticos estão a mudar, justificando desequilíbrios e dificuldades em lidar com o fenómeno. Em concreto, a chegada da barata americana ao continente português, as alterações climáticas, a resistência crescente de diferentes espécies aos insecticidas, e o aumento do fluxo de pessoas e do consumo na cidade ajudam a perceber o que se passa entre nós e as baratas.

“Elas procuram-nos porque encontram nas nossas casas ares condicionados, humidade controlada, comida, ou seja, condições óptimas para viver”, afirma António Mexia, professor catedrático aposentado do Instituto Superior de Agronomia. À boleia das suas compridas antenas, que são como "milhares de narizes" à procura de comida, longe das luzes, entre entulho, fendas, esgotos, armários estreitos e armazéns de alimentos, elas procuram sobreviver. Mas, com o aumento das temperaturas, “o seu ciclo de vida encurtou, ou seja, ocorreu como que uma aceleração do período entre a postura dos ovos até surgirem os indivíduos no estado adulto”, nota Manuela Cordeiro, engenheira agrónoma no departamento de Agroquímica, Gestão de Pragas e Saúde Ambiental da Groquifar, associação que representa os grossistas de produtos químicos e farmacêuticos em Portugal. Os blatídeos (grupo a que pertencem as baratas) conseguem, assim, multiplicar-se mais rapidamente, tornando inequívoca a realidade de que "as populações de baratas têm vindo a aumentar".

A par disto, elas são, desde sempre, dos insectos com “maior capacidade de sobrevivência e adaptação que conhecemos”. Prova disso são as “mutações genéticas aleatórias” que têm sofrido nos últimos anos e que estão a tornar diferentes espécies “resistentes aos biocidas convencionalmente utilizados”, como destaca Manuela Cordeiro. Em suma, quanto mais disparamos, mais elas se escudam.

Alimentos e água são os maiores atractivos para as baratas
Kanchana Suebwongnirat/ PixabayAlimentos e água são os maiores atractivos para as baratas

Em Abril, a Euronews chamava a atenção para o caso da vizinha Espanha, onde, com um clima semelhante ao português, as infestações terão aumentado cerca de um terço num ano. As causas? “As temperaturas recorde são as culpadas pelo aparecimento destas baratas ‘mutantes’”, lê-se no artigo. Mas não é só isso. “Faz parte do desenvolvimento biológico de qualquer espécie. A barata só é mais resistente porque é mais maltratada”, esclarece António Mexia. 

Há ainda casos em que os químicos conseguem inibir os espécimes adultos, mas, sobre os ovos, “a eficácia é extremamente baixa”, o que faz com que as baratas voltem, explica o professor António Mexia. O regresso das baratas pode justificar-se, também, por uma avaliação inicial incorrecta do problema. É “essencial recorrer a profissionais qualificados que saibam identificar a praga e os seus hábitos (que são diferentes de espécie para espécie), que façam uma completa e correcta análise da situação, que seleccionem e implementem o plano mais adequado, que avaliem a eficácia da intervenção e reajustem a mesma, se necessário”, alerta Manuela Cordeiro. E isso nem sempre acontece.

Grandes, voadoras e americanas

Mais difíceis ainda de lidar serão as baratas americanas, chegadas à Europa há cerca de 50 anos e a Portugal continental há perto de dez. Grandes (podem atingir 5 cm de comprimento) e voadoras, adaptam-se facilmente a diferentes habitats, dentro e fora de casa. “Saem das sanitas, dos esgotos, de todo o lado”, como descreve António Mexia. “São elas que nos andam a perturbar mais recentemente” e que ressoam nas queixas aos serviços públicos, nas conversas de café e nas redes sociais como as pragas difíceis de eliminar nos verões cada vez mais longos.

Para a americana, que terá tido origem, afinal, em África (nem mesmo as chamadas baratas europeias, ou alemãs, serão do Velho Continente, mas provavelmente da Ásia), viajar “é muito fácil”, dá conta Manuela Cordeiro. Navegando entre continentes dentro de caixas de móveis ou em sacos de batatas, o insecto um “caso de sucesso de dispersão por todo o globo”. Eliminar esta espécie, no entanto, é “habitualmente um processo faseado, complexo e moroso”, assume a especialista, até porque, vivendo bem no exterior, em diferentes condições atmosféricas, "apanhá-la" torna-se mais difícil.

"Vamos ter de viver com elas"

Os químicos não são a única ferramenta disponível para controlar populações de baratas e, muitas vezes, a estratégia adoptada implica a combinação de diferentes métodos. Há muitos produtos biológicos, mas "normalmente as concentrações são baixas" para resolver pragas, reconhece António Mexia. Existem, ainda, medidas físicas (dos ultra-sons à ionização) que, segundo o especialista, podem contribuir positivamente em situações de pequena escala. E também são usados tratamentos de regulação da temperatura. Mas "apenas a temperaturas inferiores a -18 ºC se conseguem inviabilizar os ovos de barata", o que inviabiliza a aplicação do método em grande parte das situações. 

Barata europeia ou alemã
Erik Karits/PixabayBarata europeia ou alemã

Também do lado dos químicos há limitações, e não é apenas o facto de eles próprios estarem a tornar as baratas mais resistentes. Sendo uma área fortemente regulada a nível europeu, a artilharia disponível contra as baratas é relativamente reduzida. Como refere Manuela Cordeiro, “sempre que possível, os profissionais de gestão de pragas urbanas e saúde ambiental preferem medidas físicas e biológicas às químicas. Mas quando não há outra solução, o uso de biocidas eficazes é essencial”. No entanto, “começam a escassear ferramentas”, o que coloca “questões de enorme relevância económica e na protecção da saúde pública”, defende a especialista.

A questão que se impõe é: se não podemos vencê-las, juntamo-nos a elas? “Não fazer nada não é solução”, reconhece o professor António Mexia. Não sendo agentes patogénicos, as baratas (que consomem alimentos como carne crua ou dejectos de outros animais) podem transportá-los. “Um dos maiores riscos que representam é a propagação de bactérias, fungos, protozoários e vírus capazes de transmitir doenças importantes às pessoas, como sejam a disenteria, infecções por salmonella ou hepatite infecciosa”, enumera Manuela Cordeiro.

Se “vamos ter de viver sempre com elas”, como vaticina António Mexia, o melhor é apostar na prevenção, através da criação de ambientes pouco atractivos para as baratas: limpos, sem acesso a alimentos e água, mantendo o lixo fora do alcance, em contentores fechados. "Não há nada mais eficaz."

Um ecossistema desequilibrado

Há, ainda, outra forma de olhar para a questão das baratas, a menos antropocêntrica e, talvez por isso, a mais equilibrada. António Mexia traz à conversa um episódio da história dos Estados Unidos para lembrar como uns desequilíbrios geram outros. Há muitas décadas, os lobos do Parque Nacional de Yellowstone começaram a ser vistos como predadores indesejados. Comiam outras espécies, incluindo o gado dos colonos. Incomodados, os humanos quiseram eliminá-los. Consequência? A população de alces e veados disparou, a flora entrou em desequilíbrio, o ecossistema desmoronou-se. “Tiveram de reintroduzir o lobo… E a mesma história pode contar-se sobre as baratas ou qualquer outra espécie”, afirma o professor. 

As baratas e o ecossistema
Lakshan Costa/ PixabayAs baratas e o ecossistema

A frequência crescente de pragas é um incómodo e um perigo para a saúde pública, mas também sintoma de que “estamos a simplificar em demasia os sistemas biológicos”. “Só reagimos quando há uma espécie que se sobrepõe em termos de quantidade”, interpreta o professor, assegurando que se as cidades fossem mais biodiversas haveria “menos desequilíbrios” deste tipo. À teoria acrescenta-se este comentário de Manuela Cordeiro: “As baratas são animais que têm um papel fundamental na reciclagem de matéria orgânica morta na natureza. Atrever-me-ia a dizer que áreas com matéria vegetal são ‘amigáveis’ para a instalação de populações de baratas por representarem uma fonte de alimento.” 

Sendo grande parte das cidades pouco naturalizadas, o foco centra-se na gestão dos resíduos urbanos e no controlo das pragas, normalmente em curso nos meses mais quentes. "É importante esclarecer que, ao contrário do que muitos gestores das cidades assumem, as doenças transmitidas por pragas urbanas são realidades bem presentes e não relíquias pertencentes ao passado. Imperioso é, portanto, que os profissionais de saúde estejam alertados e preparados para o diagnóstico de zoonoses (doenças infeciosas transmitidas dos animais para os seres humanos). E são urgentes novas abordagens, uma actuação coordenada e multidisciplinar que envolva os profissionais de gestão de pragas urbanas, como já acontece noutros países", aconselha Manuela Cordeiro. Na base, estará ainda a "minimização de todos os factores potenciadores do desenvolvimento da praga" por parte da população, sublinha a especialista.

Não havendo mundo vegetal nem cadeia alimentar, e sendo a gestão do espaço urbano muitas vezes deficitária, as baratas ficarão connosco, mesmo que, por regra, nos apercebamos tarde delas. “Outro dia entrei num restaurante e disse logo ao meu colega: ‘Tu já viste o cheiro a barata que está aqui? É um odor característico, mas o cidadão comum não está treinado para senti-lo. Se estivesse, saía a correr de muitos restaurantes”, graceja Mexia. 

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