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Há barulho, conversas cruzadas, um entra e sai de gente e entusiasmo que contagia. Na sede d'A Avó Veio Trabalhar só não há mãos a medir. Aqui, Agosto não está a ser sinónimo de abrandamento. Em torno de uma mesa comprida, quatro senhoras cosem e enchem pequenos burros de pano, uma das várias empreitadas em curso. Seja costura, colagem ou bordado, a conversa, essa, acompanha qualquer tarefa.
Dinora é a mais nova do grupo que aqui se sentou a trabalhar. Aos 73 anos, soma mais de dois de afinidade com o projecto. É avó de nove netos, o que interfere com a assiduidade. Sempre que pode, pelo menos uma vez por semana, junta-se às outras avós, com quem aprendeu a bordar. "É este convívio, o sentir que todas partilhamos um ambiente que nos ajuda a desanuviar e onde puxamos para cima aquelas que estão um bocadinho menos bem", partilha.
Multiplicam-se as histórias de como tropeçaram no projecto, mas uma coisa é certa: há um antes e um depois d'A Avó Veio Trabalhar. Para Rosário, que acaba por trocar os burros por uma das fotografias do arquivo da Casa do Artista (já lá vamos), o dia-a-dia mudou há seis anos, ainda na pequena loja da Rua do Poço dos Negros. A cunhada, com o mesmo nome, foi das primeiras a juntar-se. Quando esta morreu, o desejo de ter, finalmente, a experiência de costurar, criar e viajar em grupo tornou-se inadiável. "Sou viúva, vivo sozinha e isto aqui está sempre alegre", exclama. Vem todos os dias de Alfama para a Penha de França. Com os mentores do projecto, embarcou em novas aventuras, já depois dos 80 – aprendeu a bordar manualmente (trabalhou na Singer, por isso só dominava as máquinas), conheceu o Porto e Coimbra e já voou duas vezes para aos Açores, além de uma escapadinha até à Bélgica... em trabalho, claro.
Dez anos a abrir caminho
Pode dizer-se que, numa década de A Avó Veio Trabalhar, foram muitas as "avós" que viram as suas rotinas mudarem. O projecto nasceu da vontade de Ângelo Campota e Susana António, que conseguiram construir uma marca assente em dois pilares complementares – de um lado, a promoção de um envelhecimento activo, do outro, a valorização do design e das expressões artísticas a uma escala local. O sonho ganhou forma na Praça de São Paulo, em 2014, com um grupo de 20 senhoras da vizinhança. Dez anos depois, o número de seniores envolvidas quadruplicou, o projecto ganhou ramificações em Lagoa, na ilha de São Miguel, e em Cascais e, em Lisboa, ocupa o maior espaço alguma vez arrendado.
"Quando começámos no centro de São Paulo, sabíamos que o projecto era muito mais, mas as pessoas só nos viam como ocupação de tempos livres e não conseguíamos quebrar esse estigma. Ao fim de um ano, decidimos dar o salto e dizer: não, somos uma coisa diferente. E quando abrimos uma loja, as pessoas perceberam. O espaço era bem decorado, artístico, bonito, sexy. E tivemos a sorte de ir para o Poço dos Negros na altura em que o Poço dos Negros floresceu, em que vieram turistas, jornalistas, estava tudo em ebulição. E para as avós também foi um território muito diferente, em que fizeram novas amizades, conheceram pessoas diferentes", explica Susana, em jeito de balanço.
Seguiu-se outra morada, junto à Praça Paiva Couceiro, antes da última mudança, para o Largo Mendonça e Costa, a dois passos da Rua Morais Soares. Com a renda a representar o principal encargo do projecto – em Lisboa, a estrutura é financeiramente autónoma, ao contrário de Cascais e dos Açores, onde é apoiada pelas autarquias –, as "avós" aceitam as mais ambiciosas encomendas. Os burrinhos são para um hotel no Douro, enquanto os seus parentes mais próximos, as cabrinhas de pano, têm como destino Courchevel, nos Alpes franceses. Mas estas mãos ocupam-se de muitas outras empreitadas – da colossal bandeira desenhada por Kruella d'Enfer para a final feminina da Taça de Portugal estão a nascer dezenas de mochilas e a colecção com flores açoreanas está pronta a lançar. Outro dos projectos em curso é com a Casa do Artista, uma forma de animar os dias dos utentes desta instituição através das manualidades. No final, haverá uma exposição de bordados sobre fotografia, com alguns tesouros do arquivo da casa.
A sustentabilidade financeira continua uma prioridade para a dupla de mentores. Durante os últimos dez anos, as parcerias com marcas têm permitido manter o projecto à tona, sem que nenhuma das "avós" tenha de pagar pelas actividades propostas. "É uma máquina que tem de ser alimentada. Vamos atrás dos clientes por forma a gerarmos dinheiro para suportarmos todas as despesas mensais. Depois, o que é que acontece? Resta-nos muito pouco tempo para pensar fora da caixa, em experiências transformadoras, que beneficiem directamente as avós", nota Ângelo. "Mas acho que isso tem acontecido", assinala Susana. "Sempre através destas viagens aos estrangeiro ou pelo país, ou de algumas campanhas que fazemos. De repente, as avós vão experimentar um restaurante novo, vão a um festival de Verão", acrescenta.
Um futuro brilhante
De volta à mesa de trabalho, encontramos Gracinda, uma veterana d'A Avó Veio Trabalhar. Juntou-se ao grupo mesmo no início e desde então já correu, não o mundo, mas parte do país e da Europa. "Aprendo e ensino, e aqui trabalha-se com o coração – a gente borda, a gente canta, a gente dança, tem almoços, festas, vamos para fora. É a família que vamos criando no dia-a-dia", exclama do alto da sua vitalidade.
Celeste, outra das que trabalha à volta da mesa, tem 77 anos e há dois bateu à porta. Achou que, por morar em Belas, não haveria lugar para ela na Penha de França. Estava enganada. "Estou aqui todos os dias e adoro. Só o facto de me levantar, de me arranjar, de pôr um bocadinho de batom e de sair para a rua já é muito bom", refere.
Celeste é reformada. Num grupo que vai dos 60 aos 90, os contextos são diversos – há situações de desemprego e de dificuldade na reintegração no mercado de trabalho e ainda de "avós" de outras nacionalidades que ocasionalmente visitam a família em Portugal e aproveitam para passar alguns dias em boa companhia. "Há uma coisa que elas valorizam, que é esta ideia de liberdade. Vêm quando querem, não há nenhum tipo de horário. sugerimos que venham uma vez por semana para conseguirem entrosar-se, mas são completamente livres", continua Susana.
"Depois nós vendemos também esta ideia da beleza, de continuar a viver. No fundo, fazer projectos de vida aos 80 ou aos 90. E acho que é isso que atrai pessoas mais novas, esta ideia de espaço que não é catalogado como idoso ou sénior, mas como de liberdade e de oportunidades, de voar num túnel de vento, de fazer uma design week na Bélgica ou, como agora, de ir ao Japão", afirma a mentora. As "avós" não param – vão ao Lux Frágil servir o pequeno-almoço todos os meses, alinham no Carnaval da Colombina Clandestina e estão prestes a dar workshops do outro lado do mundo.
Voa alto, mas não o suficiente para deixar de fazer planos. Em Setembro, Ângelo e Susana querem levar para a rua uma campanha fotográfica para assinalar os dez anos. A longo prazo? Abrir uma cafetaria com o selo A Avó Veio Trabalhar, onde as tostas de abacate dão lugar aos bolinhos caseiros e a equipa será exclusivamente composta por pessoas com mais de 60 anos.
"No fundo, somos uma espécie de agência criativa, que trabalha com a população sénior. E, se amanhã A Avó Veio Trabalhar acabasse, ficaria muito feliz por ver que mudámos um bocadinho a visão que as pessoas têm do envelhecimento. As pessoas têm muito medo de envelhecer, mas quando olham para as nossas avós, quando vêm a um evento, quando fazem um workshop, de repente, pensam: se isto é envelhecer, então não há problema. Nunca pensei que conseguíssemos passar esta ideia, mas passámos", remata Susana. E porque não criar uma agência de modelos? As solicitações chegam, volta e meia, e as "avós" têm ainda muita vida pela frente.
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