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A Culturgest dedica uma exposição a Jean Painlevé (1902-1989), pioneiro no documentário e fotografia da vida animal e, em especial, da fauna subaquática. Na Galeria 2 são mostrados filmes e fotografias que mostram o arrojo estético e experimental da obra deste realizador francês bastante peculiar. A inauguração é esta sexta-feira, 22, pelas 22.00.
Jean Painlevé realizou, entre os anos 20 e início dos 80 do século XX, cerca de 200 curtas-metragens sobre fauna sub-aquática que o tornaram famoso. O que também se poderia dizer de outra maneira: Painlevé realizou 200 curtas-metragens em que criou um bestiário subaquático insólito, cruel e maravilhoso que o tornou famoso. "Toda a ciência é ficção", disse o próprio, consciente de que o olhar do observador contamina o observado, e, por isso mesmo, concedendo a si próprio grande margem de liberdade estética. Isto, apesar de se orgulhar do seu trabalho científico rigoroso, recorrendo ao microscópio e à dissecação de animais, e de se empenhar na capacidade pedagógica dos seus documentários.
Para comissariar esta que é a primeira exposição institucional em Portugal sobre esta personalidade multifacetada, a Culturgest convidou Alice Dusapin, Martin Laborde e Baptiste Pinteaux, três membros do Ampersand, um colectivo à partida avesso a uma ideia de retrospectiva clássica, cronológica, direitinha; um colectivo que explora as margens de uma biografia longa. Resumindo muito essa biografia longa, Painlevé foi o filho anarquista de Paul Painlevé, um célebre matemático e duas vezes primeiro-ministro francês, foi artista de vanguarda, próximo dos surrealistas, sem ser surrealista, foi produtor e crítico de cinema, autor de 200 curtas-metragens, defensor da educação popular, membro da Resistência e até criador da marca de jóias Hippocampus, após o grande sucesso do seu documentário L'Hippocampe. Ao seu lado teve sempre (desde 1924 até ao fim) Geneviève Hamon, primeiro sua assistente e depois sua co-realizadora.
Com esta exposição, a Ampersand quer homenagear "uma obra que se distingue pela sua ambição científica, pela sua exímia encenação, pela sua astuta ironia e pelo seu sério diletantismo". E é isso que se vê ao longo de sete salas, três das quais são pequenas salas de cinema onde são projectados Assassins d'Eau Douce (Assassinos de Água Doce), na sala 2, Les Amours de la Pieuvre (Os Amores da Polvo-fêmea) e Barbe-Bleue (Barba Azul), na sala 4, e Acéras ou le Bal des Sorcières (Akeras ou a Dança das Bruxas), na sala 7.
Assassins d'Eau Douce é produzido em plena Segunda Guerra e parece ser um palco dela, com os crustáceos num combate canibalesco e um tanto repulsivo de bichos que se despedaçam e se engolem uns aos outros. É simplesmente uma lei da natureza – comer e ser comido – diz a voz off, descrevendo "mastigar, despedaçar, chupar, moer, perfurar, sugar, devorar", ao som de alegre e animada música de Louis Armstrong e Duke Ellington, causando no espectador um sentimento de desconcerto.
É na última sala, com Acéras ou le Bal des Sorcières, que a ambivalência repulsa/humor, com o humor a ganhar, atinge o pico, não só pela imagem e música, mas também pelo texto, discretamente hilariante. Painlevé era aliás conhecido pelos seus trocadilhos, segundos sentidos e jogos de palavras. Neste filme, de 1972, começou por ser sobre o ciclo de vida das akeras, lesmas do mar castanhas que rastejam pela lama na maré baixa, até que Painlevé descobre que, no período reprodutivo, as lesmas se levantam da lama e dançam na corrente marinha. Vemos essa dança, com uma montagem que a torna uma coreografia e começa a entrar em delírio ("psicadélico" foi o adjectivo usado por um dos comissários da exposição), em que o fundo marinho é alternado com fundo cor-de-rosa, lilás, âmbar.
A montagem chega a incluir frames subliminares da Dança Serpentina da bailarina americana Loïe Fuller. Acresça-se a isto que as lesmas do mar têm a aparência de órgãos sexuais humanos e que são hermafroditas recíprocos simultâneos, os seja, têm os dois sexos e usam-nos ao mesmo tempo com dois outros indivíduos. Após a dança, encaixam-se umas nas outras numa cadeia orgíaca que muito fascina Painlevé. A voz off relata qualquer coisa como "enquanto dura a orgia as lesmas aproveitam para ir petiscando lodo".
Entre o filme de guerra da sala 2 e a sessão para adultos da sala 7, lugar para... um momento infantil. Barbe-bleue, de 1938, é o primeiro filme de animação em stop motion com massa de modelar, uma ópera bufa ao mesmo tempo mórbida, cruel e divertida (uma das personagens tem a cabeça cortada ao meio mas fala como se nada fosse) em que de novo vale a pena estar atento ao texto. É também nesta sala que pode ver Les amours de la pieuvre/A vida amorosa da polvo fêmea, esse "animal horrifique", de 1967.
Para as outras quatro salas, os Ampersand foram buscar uma ligação visual criada pelo papel de parede com padrões desenhados por Geneviève Hamon. Nelas encontramos fotografia que nos permite conhecer os processos de trabalho e a vida de Painlevé, marcada pelo gosto pela amizade e camaradagem, e oito curtas dos anos 1930, 40 e 70, entre as quais La Pieuvre, filme mudo de 1929, primeira curta documental de Painlevé e Hamon, filmada ainda, não debaixo de água, mas sim em aquário, com iluminação para filmagem, a que parte dos animais não resistiam. Na exposição, agarre a muito informativa folha de sala da Ampersand.
Culturgest. Rua do Arco do Cego, 50. Ter-Dom 11.00-18.00. De 23 Nov até 23 Fev. 5€ (entrada livre ao domingo). Inauguração: 22 Nov (Sex) 22.00
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