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“Há sempre alguém com interesse em que o punk pareça morto”. Só que não

Deixou marca nos anos 70 e, durante décadas, como num malmequer, foram-se-lhe tirando as pétalas: punk’s dead, punk’s not dead. Furtivo e tentacular, em Lisboa, o punk de 2024 é outro. Fomos à procura dele.

Rute Barbedo
Escrito por
Rute Barbedo
Jornalista
Dalai Lume em estúdio
Francisco Romão PereiraDalai Lume nos vividos JapEstúdios, Sacavém
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 669 — Primavera 2024.

É o quinto concerto das Lesma, uma “banda de gajas” saídas do secundário, e a sala está cheia. O público grita: “Toquem a do Barreiro! A do Barreiro!” A partir do palco, o Barreiro representa a quimera do pós-adolescente, a utopia de um lugar de liberdade, onde tudo pode funcionar bem. “Só lá fui umas três vezes, mas, um dia, estava ao pé do Moto Clube e sei lá... Achei tudo altamente! Então fiz esta letra sobre eu ser do Barreiro [não sendo] e onde falo mal de outros sítios, mas só com o objectivo de pôr o Barreiro para cima. Até fizemos umas t-shirts a dizer: Eu sou do Barreiro”, conta Leonor.

As t-shirts andam pela sala escura, suadas, a levar com cabelos feitos baquetas. Rápidas, as Lesma tocam em salas pequenas, como esta cave na Penha de França, em lugares mais ou menos novos que, numa tentativa conjunta embora não concertada, ousam a diferença. Para Leonor, Rita e Beatriz, ter “uma banda de gajas já é imensamente punk”, nos dias que correm. Mas não é só isso. Elas querem fazer barulho e espicaçar a monocultura com “uma explosão de fluorescentes”, contam, sobre uma mesa de plástico da António Arroio, a escola que exibe o A anarquista à entrada e de onde saíram dezenas de criações punk no passado, mas onde “já não há nada disso”.

Lesma
DRLesma

Se o punk está vivo ou morto é a pergunta do eterno retorno. Para as Lesma, foi ele que abriu a possibilidade de evocar uma qualidade menosprezada, o ridículo. Nenhuma das três tem moicanas nem quer ser vincadamente política. “Acho que não é preciso”, arrisca Leonor, ainda que a véspera, 10 de Março, tenha sido de eleições atípicas. O punk permite-lhes a liberdade de não ter uma posição sobre as coisas, na era da opinião, se for isso que quiserem fazer. 

Documentar o punk. E continuá-lo

Inspirado em movimentos como o dadaísmo ou o surrealismo, o punk, com este nome, surgiu na década de 70 – e Lisboa não ficou de fora da onda de contestação do estabelecido. A história coloca Alvalade no arranque e Os Faíscas (de Pedro Ayres Magalhães, que haveria de fundar, mais tarde, os Madredeus) como banda pioneira. “Foram tempos do caraças, em que a malta se juntava aqui no jardim, na maior liberdade. Desde homossexuais que não eram aceites em mais lado nenhum a hippies, freaks, tudo”, conta André Cruz, antigo roadie de João Ribas (Tara Perdida), nos Coruchéus, terroir embrionário do punk. Com “os consumos, as prisões e a vida de cada um”, o movimento “deixou de fervilhar”. “Morreu muita gente”, reconhece André, lembrando o descalabro da heroína, nos anos 80 e 90.

André Cruz e Cristina Carrilho, da Pró Punk
Francisco Romão PereiraAndré Cruz e Cristina Carrilho, da Pró Punk

Esse punk acabou. Mas ficou um modo de vida: “De respeito pelo outro, independência, autossuficiência. É não estarmos preocupados se nos vão despedir. Mas já não é para a gente se matar, é para nos divertirmos.” Para muitos que, como André, cresceram com o punk, a vida não faz sentido sem ele. Por isso, criou a Pró-Punk, uma associação pela memória e futuro do movimento, em que um dos primeiros trabalhos será registar os testemunhos de “grandes figuras do país, de Lisboa aos Açores, que têm histórias que mais ninguém tem”

Da associação também faz parte Cristina Carrilho, organizadora do Vai d’embute Punk Fest, festival anual dedicado ao punk rock cantado em português. “Eu era bancária e, antes de sair do trabalho, ia à casa de banho mudar de roupa. O meu chefe perguntava: ‘Porque é que vais assim vestida?’ Ia para os concertos… Não tinha amigos punk, mas desde cedo identifiquei-me com as músicas, as letras, o estilo de vida. O punk sempre foi das culturas mais inclusivas.” Cristina acabou por abandonar o banco e começou a organizar concertos.

Eduardo Vaz Marques ou Zorb, vocalista dos Dalai Lume
Francisco Romão PereiraEduardo Vaz Marques ou Zorb, vocalista dos Dalai Lume

Ao domingo, os Jap Estúdios, em Sacavém, são paradeiro habitual da dupla. É aqui que encontramos os Dalai Lume, que há muito não faziam músicas novas, mas que, em 2023, sentiram que “isto estava a ficar mau” e que era preciso “ser mais incisivo”. Aos 18 anos de banda, aquecem com um xiripiti antes de ensaiar “Bairro Alto” ou “Abjecção”. Abriram o ano com “Pombos Emproados”, single que critica “os poleiros”, os políticos “cheios de razão” e “os que ainda acreditam que só lá vão com ditadura”. 

Na visão de Bidgi, o baixista, “o punk esmorece quando está tudo bem”. Mas agora não está. “Tempos de ‘Venturas’ precisam de nós”, complementa Zorb, o vocalista. Mas também há um lado de salvação individual nestes estúdios apertados, nos “sítios fora da rota”. “Isto é uma catarse, é a nossa casa. A parte mais livre que tenho é a música, porque a sociedade, lá fora, é lixada”, assume Bidgi.

Moda, indústria e agilidade

Do rebentar do século em diante, em Lisboa, o movimento perdeu visibilidade, mantendo-se vivo na sua célula primária, o underground. Um pouco por toda a Europa, a ideia da morte do punk repetia-se, em paralelo com a sua mercantilização, em t-shirts dos Ramones. Em 2015, o paradoxo atingiu o auge num cartão de crédito com a estética dos Sex Pistols. “É a prova de que o punk morreu”, escrevia-se. 

Mas o punk, atesta a socióloga Paula Guerra, “é talvez a última cultura da modernidade com este lastro camaleónico, poliédrico, que se vai transmutando”, não é fácil de apanhar. “Depois, há um conjunto de manifestações que vão beber ao punk através do ethos DIY [do it yourself], mas que vão muito para além dele”, diz a investigadora, que assinou, entre outros trabalhos, o livro As Palavras do Punk, com Augusto Santos Silva, ex-presidente da Assembleia da República. 

Sem seguir uma linha estrita, a vontade de colorir cabelos voltou a encarniçar a cidade. Voltaram também os cartazes de linguagem crua e acendeu a mobilização em torno de assuntos como as questões de género, o limite à liberdade de expressão, as alterações climáticas ou os conflitos internacionais. Todas elas “são alimentadas por estas pessoas”, aponta a académica, que vê um punk com “grande expressão”, que “continua a problematizar” e a ser “controverso”.

Gil Dionísio, músico
Francisco Romão PereiraGil Dionísio, músico

“Há sempre alguém com interesse em que o punk pareça morto”, acredita Gil Dionísio, contador de histórias e músico em Criatura ou No Nazis in Punk. Para ele, ser punk e artista não foram bem escolhas. “O punk só é punk porque já levou na boca”, explica, sentado numa esplanada banal da cidade. O trauma e a necessidade de “tratar o lado emocional” estão, aliás, na génese dos Pás de Problème (assim, com acento no A), outra das suas bandas e o nome que tem tatuado nos dedos. “Nos Pás, temos todos problemas graves nas nossas relações paternais, mas às vezes o trauma tem essa maluqueira de unir as pessoas”, reflecte.  

Num secret show do grupo, em Benfica, onde só entram amigos de amigos, não é só o garrafão de “real padráda” de onde todos bebem que une os músicos ao público. É também a ideia de que aqui se pode fabricar um momento em conjunto, porque não há uma separação entre o palco e a plateia, entre os saxofones e a dança. Gil canta “My name is Mustafa and I belong to no one…” e há-de explicar que, no início, há 14 anos, o que hoje soa a Pás eram apenas construções prosaicas. “Gozávamos com a ideia de não sabermos tocar as nossas próprias músicas. Não existiam sonhos nem estrutura nem guita, éramos obrigados ao DIY, sempre com um pensamento crítico altíssimo. Mas agora está tudo tão precário que já não é convidativo ser punk. Nestes anos, vimos dezenas de bandas a aparecer e a desaparecer. ‘I saw the best minds of my generation destroyed by madness’ [cita Allen Ginsberg]... Pensadores a desistirem de serem artistas, pessoas a não terem espírito e a irem trabalhar para um call center… Acho que hoje a verdadeira revolução tem de ser emocional. O punk sozinho e zangado não é nada. Para lutar contra isto, já não basta a criança em frente ao tanque, porque hoje o tanque passa por cima. Ser punk, hoje, é continuar o trabalho que a cena começou: pensamento crítico, estarmos juntos e cuidarmo-nos emocionalmente.” 

Pás de Problème, em concerto
DRPás de Problème, em concerto

Anhar é que não

Foi isso que fizeram os Meia/Fé, colectivo recém-nascido do “sufoco que se tornou Lisboa”, como os descreve a ZDB. “Para mim, tocar com estas pessoas era um refúgio”, explica João, arquitecto quando não está em cima do palco. Por outro lado, pensar que são punks “dá espaço para ser mais coisas” e mais “in your face”. Como explica Mariana, que nunca tinha pegado numa guitarra antes de Meia/Fé, “o que sobressai é a emoção”. “A banda partiu de querermos dizer coisas, desde os gajos que andamos a foder até mandar o Moedas para o caralho. As ferramentas para o dizer só vieram depois.” 

À sua volta, nestes anos de confusão, sentem que “há qualquer coisa a ressurgir”. “Costumo dizer que já se voltou a poder ter bandas”, brinca João. “As pessoas estavam a precisar. E nós estávamos tão inertes nas nossas vidas que também precisávamos de deitar cá para fora. É como diz a letra: mais vale fazer arte de merda do que passar a vida a anhar”, pontua Mariana.

Meia/Fé
DRMeia/Fé

O mundo nem sempre gosta de palavrões, como lembra Alice, de 14 anos, que acompanha o pai, fotógrafo, desde os 7 a concertos de punk rock. “Muitos pais acham que esta música não é boa para pessoas da minha idade. Mas a pop também tem palavrões. Quando comecei a ir a concertos, achei tudo um bocado estranho, sim. O que via ali não era o mesmo que via na rua. Mas rapidamente me senti acolhida”, conta, lembrando os anos do Popular Alvalade, que fechou na pandemia.

Alice vai agora a menos concertos, porque “há menos salas”, mas está a aprender a tocar bateria, por “cultura geral”. No futuro, não pensa fazer música. Tem outro objectivo: “levar o legado do punk para a frente”.

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