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Hamlet foi traído e “ultrapassado pela História”

Escrito por
Miguel Branco
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Jorge Silva Melo encena A Máquina Hamlet, de Heiner Müller, e leva-nos de volta ao Castelo de Elsinore. Para ver no Teatro da Politécnica até 22 de Fevereiro.

Ainda precisamos de Hamlet, escrevemos há uma semana. Para Heiner Müller talvez a frase seja outra, qualquer coisa como: nunca mais me vejo livre de Hamlet. A Máquina Hamlet – que os Artistas Unidos, com encenação de Jorge Silva Melo, estreiam esta quarta-feira no Teatro da Politécnica, é um delírio sobre a loucura daquele jovem, é o que sobrou do jantar do Castelo de Elsinore.

Mas não é só. Diante de despojos de guerras diversas, de cabides com roupas para diferentes estações, desfilam outras personagens de Shakespeare, referenciais gregos e até gente de machado na cabeça. Um homem vem à boca de cena dizer que era Hamlet. E isso basta para a sua ruína, para a sua impossibilidade de prosseguir. Há como que um coro que levanta outros símbolos, uma sombra colectiva que tenta afastar o protagonista da solidão, que evita o monólogo. “Esta peça não é nem pode ser um monólogo. Aqui irrompem, apenas emergindo de um magma informe, Polónio, Gertrudes, Ofélia, Trotsky com o machado na cabeça, Electra. Este coro é esse magma informal que de vez em quando se cristaliza numa aparição. Porque a tragédia de Hamlet não é uma tragédia pessoal. É pública: estamos no reino podre da Dinamarca, mas agora de costas voltadas para as ruínas da Europa. Nada se cumpriu, diz-se, nem a revolta. Nada. Já vi várias produções desta peça e nunca a vi feita por um só actor; seria uma perda de tempo transformar este texto num lamento ou numa imprecação. E o mais inquietante é que vemos Hamlet aqui mesmo à nossa frente, impotente, traído, narcísico, ultrapassado pela História”, explica o encenador.

À boleia de um contrabaixo que tanto corta quanto pontua e de uma rica interpretação de João Pedro Mamede, Silva Melo monta finalmente um texto que conheceu ainda em manuscrito, em 1978. Quem privou com Müller só pode estar em vantagem na vida: “Sim, conheci bem Heiner Müller. E convivi com ele em Paris, em Roma, em Berlim. Integrei o elenco da estreia mundial de Wolokolamsker Chaussee, partilhei com ele a leitura pública de A Decisão, de Brecht – ele lendo em alemão, eu em francês –, no Centro Pompidou. E em Lisboa estreei Quartett e Material Medeia. Era um encanto: um homem caloroso, divertido, sarcástico, que nunca mostrava as suas inúmeras feridas (pessoais, políticas), mas tudo vencia com corajosa malícia”, conclui.

Teatro da Politécnica. Ter-Qua 19.00, Qui-Sex 21.00, Sáb 16.00 e 21.00 (até 22 de Fevereiro).

De Heiner Müller
Encenação Jorge Silva Melo
Com Américo Silva, André Loubet, Hugo Tourita, Inês Pereira, João Estima, João Madeira, João Pedro Mamede e José Vargas

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