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Herman José: “A estupidez humana há-de ser sempre gigantesca”

A 4 e 5 de Outubro, o verdadeiro artista sobe ao palco do Campo Pequeno para celebrar 50 anos de carreira. Aproveitámos a deixa para o entrevistar.

Renata Lima Lobo
Escrito por
Renata Lima Lobo
Jornalista
Herman José
Fotografia: Francisco Romão Pereira / Time OutHerman José
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Herman José dispensa apresentações. Mas podemos tentar: humorista, músico, actor e poliglota é, em bom rigor, um artista de variedades. Em 2024, celebrou não só o seu 70.º aniversário, como os 50 anos de uma carreira que ajudou a construir o humor português contemporâneo e, dizem, a própria democracia. Senhoras e senhores, meninos e meninas, o verdadeiro artista: Herman José.

Vamos começar pelo espectáculo ao vivo: é uma coisa que faz desde sempre, penso que mesmo desde o início da sua carreira, certo?
Sim, consegui a minha independência graças à estrada. O arranque é muito engraçado, porque eu fazia com o Nicolau [Breyner] o Sr. Feliz e o Sr. Contente. Um dia, recebemos uma carta de um agente do Norte para saber se queríamos fazer espectáculos de província e sorrimos altivamente para o convite. Mas cheguei à conclusão que num espectáculo o Nicolau podia ganhar mais do que um mês de ordenado e eu mais do que dois! Então dissemos imediatamente que sim. O primeiro ano de estrada, que foi acho que em 1976, mudou-me a vida completamente, porque trouxe uma espécie de oxigénio financeiro que me permitiu fazer uma coisa que é um luxo na vida artística: dizer que não. E foi a estrada que me pagou a casa, foi a estrada que me pagou a vida. E com uma grande vantagem: é aquilo que eu mais gosto de fazer, porque televisão para mim foi sempre uma dor, raras vezes senti prazer em televisão. Estava sempre a fazer atletismo de alta competição, sempre a fazer uma maratona. Portanto, este espectáculo é simbólico no sentido em que vou comemorar os 50 anos fazendo aquilo que mais gosto de fazer na vida.

Sabendo que não há dois espetáculos ao vivo iguais, o que podemos esperar?
Neste caso, vamos abrir uma excepção. Porque o alinhamento é rigoroso, tem acompanhamento audiovisual. Eu tenho mesmo de seguir uma ordem, mas não há outra hipótese, até porque o espetáculo vai ser televisionado pela RTP. Nem vais pedir a uma orquestra daquele tamanho que, de repente, mudem os papéis, porque o grande artista saltou três pontos de alinhamento. Porém, os vários momentos que compõem nunca são rigorosos, tem sempre uma grande componente frescura que eu próprio preciso. Tenho de me surpreender para me divertir.

O público não estará um pouco à espera do improviso?
Sim, mas o público nunca percebe o que é e o que não é improviso. Há espectáculos ditos de improviso que se fazem por aí que são sempre o mesmo espectáculo, de improviso não têm nada.

O Herman tem a capacidade de agregar várias gerações. Isso costuma traduzir-se nas pessoas que assistem aos espetáculos ao vivo?
Traduz-se. As minhas plateias são deliciosamente jovens. Eu acho que há uma geração, curiosamente, que predomina nitidamente: as pessoas que têm agora entre os 35 e os 45 anos. Talvez porque são mais arrumadas e ainda com disponibilidade, com dinheiro para se deslocarem, com convicção, com saúde. Depois há os muito novos, que me deixam completamente espantados, que vêm às vezes com os pais. E depois da minha geração lá vai havendo com algum custo. A minha geração tende a ter um bocadinho menos de sentido de humor, porque a vida se encarrega de comprimir as pessoas.

Herman José
Fotografia: Francisco Romão Pereira / Time OutHerman José, no Campo Pequeno

Tenho ideia de o ouvir dizer há uns tempos que nos espetáculos ao vivo pode ir mais longe do que na televisão. Tendo em conta que já destruiu um cenário aos tiros de caçadeira, estamos a falar de quê?
Estamos a falar de eu actuar às duas da manhã numa Queima das Fitas e o tipo de malandrice poder ir infinitamente mais longe do que actuar, como me aconteceu a 15 de Agosto, ao lado do Santuário de Fátima, às sete e meia da tarde. Portanto, aqui a inteligência é fazer que, tanto num momento como no outro, a coisa pareça muito fresca, muito livre, nada condicionada. Isso depende de nós e da nossa inteligência, mas obviamente que se for trabalhar às tantas da noite, para um público de malucos, aquilo vai um bocadinho mais longe, e digo coisas inenarráveis, que me fazem corar a mim próprio.

A propósito dos limites ou não do humor, estes 50 anos de carreira acontecem no mesmo ano dos 50 anos de 25 de Abril. Não é uma coincidência, pois não?
É muito giro, porque eu começo por causa do 25 de Abril. Como não me apetecia ir à tropa, usei um expediente que se usava muito na altura: quem podia escolher a nacionalidade, que era o meu caso, optava pela estrangeira. Eu optei por ser alemão, e, portanto, a PIDE chamou-me para me explicar que, como queria ser alemão, tinha três meses para sair do país. Comecei a preparar a minha ida para Munique, inscrevi-me na Escola Superior de Cinema, aluguei um apartamento, e a minha vida ia continuar a partir de lá. E quando me estou a preparar para ir dá-se o 25 de Abril. Passados uns meses já estava a trabalhar com o Pedro Osório, com José Jorge Letria, com imensa gente a cantar e a tocar viola baixo e a ser profundamente feliz. Em 1975, entro numa revista e depois sai-me a sorte grande que foi conhecer o Nicolau e fazer o Sr. Feliz e Sr. Contente, que me lançou definitivamente como artista de variedades.

Curiosamente, não se livrou de algumas tentativas de censura, amplamente conhecidas pelos portugueses: primeiro com as “Entrevistas Históricas”, em particular a entrevista à rainha Santa Isabel [Humor de Perdição, 1988] e depois com “A Última Ceia” [Herman ZAP, 1996]...
Porque o processo de democratização não é uma coisa científica, é uma coisa orgânica e lenta e às vezes volta atrás. E eu passei alguns tempos conturbados naqueles anos 80. Depois as coisas tornaram-se mais normais, hoje em dia são normalíssimas e já não há tanto essa dicotomia direita-esquerda nas pulsões sensórias. Há é esta cultura ridícula woke, que parece mal dizer isto, parece mal falar não sei o quê.

A propósito, no Instagram, o Herman partilhou recentemente um sketch do Felizberto Lalande, que não conseguia dizer os L’. E alguém comentava que hoje até esse tipo de humor seria cancelado. Estamos mesmo nesse ponto?
Não, tão longe eu não diria. Mas tenho a noção que há riscos que hoje em dia não se correm. Há uma coisa que para mim passou a ser inevitável, que é o blackface, o actor que se pinta para parecer africano. Há uns anos, o Manuel Marques fez de Djaló e ninguém se insurgiu. Hoje seria impensável. Isto é muito perverso, porque à conta de se querer ser tão politicamente correcto, está-se a menorizar a raça negra. Então eu posso mascarar-me de Lili Caneças, posso pôr o nariz e uma barba para ser o Milhazes e não posso pintar a cara para parecer como a figura que eu admiro de raça negra? É uma discussão complicada. Por outro lado, é uma discussão que dá tanto trabalho ter que mais vale não arriscar. A última personagem que eu quis fazer foi a Mariama [Barbosa] no Passadeira Vermelha e veio um actor negro fazer, o Igor Regalla. Foi giríssimo, não houve problema nenhum. Mas hoje em dia, num Portugal democrático e aberto, acho que há preocupações que são exageradas.

Costuma pensar sobre que sketches fez no passado que hoje não seriam emitidos na televisão?
Vou dizer o contrário. Há coisas que foram muito complicadas na altura que agora seriam completamente diferentes, como esse sketch da “Última Ceia”.

Se bem que houve o problema com os Jogos Olímpicos.
Pelas razões erradas. Porque confundiram um quadro com outro [seria o quadro “A Festa dos Deuses”, de Jan Van Bijlert]. A estupidez humana há-de ser sempre gigantesca. Mas a própria Igreja sofreu uma evolução extraordinária. Esta reunião que o Papa Francisco fez com humoristas – que eu infelizmente não pude ir, porque estava em Nova Iorque – foi uma chapada de luva branca. Há aqueles que são mais papistas que o Papa e que acham que não se pode falar em nada. Claro que se pode.

Aos 70 anos, o Herman não se senta para descansar, recolher os louros de uma carreira bem-sucedida. Continua a trabalhar, seja nos espectáculos ao vivo, na televisão, nas redes sociais…
Mas também paro muito bem. Ganhei uma técnica de dolce far niente que às vezes eu próprio penso “é pá, que maravilha”. É extraordinário. Para mim um dia de descanso equivale a um mês de férias. A grande dor da televisão é a escrita, escrever humor é a coisa mais chata do mundo. Mas depois realmente eu tenho uma capacidade de parar e de aproveitar o momento.

Mas (como poucas pessoas da sua geração) aposta muito nas redes sociais e trabalha-as de forma bastante profissional.
Sim, mas isso é como passatempo. Os árabes têm uma coisa chamada worry beads, uma espécie de uns terços que eles trazem na mão – aquilo é uma maneira de libertar o stress. O telemóvel para mim tem esse efeito e o facto de estar a brincar e a meter coisas no Instagram e a fazer experiências nunca é por razões profissionais, é sempre uma mini-diversão, enquanto estou à espera de qualquer coisa.

Herman José
Fotografia: Francisco Romão Pereira / Time OutHerman José

O Herman é um ícone desde muito cedo e explodiu com O Tal Canal. Tem sido uma medalha difícil de carregar ao longo destas décadas todas ou usa-a com alguma leveza?
Seria pesada se o mundo fosse Portugal. Mas como eu viajo muito, rapidamente percebi que a minha iconografia estava ligada a um sítio muito pequenino. O mundo já é pequenino, não é? Há uma coisa muito gira que o Carl Sagan dizia: nós somos pequeninos ácaros numa ameixa que anda à volta de uma estrela sem nenhum interesse chamada Sol que está no limite da Via Láctea, que por sua vez faz parte do universo igual a bilhões de universos a perder de vista. E no meio de toda esta pequenez nós ainda achamos coisas. Que há poderes divinos que nos vão ouvir, que nos vão ajudar a trocar de carro, que nos vão curar da constipação. Somos tão ridículos nessa nossa pequenez. Essa autocrítica, essa percepção da nossa pequenez, nunca me deixou montar na felicidade de ser seja o que for. E dou imenso valor às pessoas que gostam de mim, retribuo sempre a gentileza.

Este ano recebeu a Medalha de Honra da Cidade de Lisboa, foi condecorado pelo Presidente da República, a SPA também lhe deu um prémio. Ana Gomes disse que ‘o Herman tem posto Portugal a pensar e a rir de si próprio’ e há quem diga que é um dos obreiros da nossa democracia. Como reage a estas distinções e observações?
Há uns tempos não havia a distância de acharem nada disso. Nos anos 2000 estava eu ainda numa espécie de travessia do deserto, porque fui para a SIC e depois o programa tinha de lutar contra as audiências da TVI e portanto havia ali muitos facilitismos e muitas coisas que depois eram discutíveis. Tão depressa tinha uma entrevista extraordinária com o Julio Iglesias, como logo a seguir vinha uma senhora fazer de Pomba Gira e mostrar a celulite. Essa fase não foi nada unânime. Mas depois estes 20 anos deram recuo. E quando a pessoa recua e começa a ver as coisas a uma certa distância, aí sim é que se formulam as opiniões.

O Herman é, essencialmente, um observador. Não se mete na política, mas oferece uma certa abertura de pensamento à sociedade. Prefere não se meter mesmo, não assumir se é de esquerda ou de direita?
É porque verdadeiramente tenho muita dificuldade em me catalogar. E mesmo assim, acho que se a minha tarefa hoje em dia é divertir as pessoas, e arranjar máximos denominadores comuns de entretenimento, não vou ganhar nada com esses discursos e essas militâncias, porque também não sou eu que vou mudar coisa nenhuma. Agora, há coisas que vou continuar sempre a fazer, que é não perder uma coisa que é absolutamente essencial: a gentileza. Que mesmo nas coisas atrevidas pode estar presente. Podes fazer a pior das caricaturas, mas se estiver presente uma certa gentileza, há sempre uma mais-valia. Há-de reparar: o meu Nelo é completamente doido, mas é assertivo, impõe-se. A sua fragilidade é também a sua força, portanto, ele não tem uma componente quase homofóbica de estar a fazer pouco de um certo tipo de pessoas. Não. Ele é um certo tipo de pessoas, mas com uma fortaleza, uma alegria e uma esperteza saloia que transforma aquela personagem numa criatura bondosa.

E o Diácono?
Era delicioso, porque era um moralista, mas tarado sexual. E isso dá-lhe uma extraordinária mais-valia. Porque um censor Diácono que não seja tarado sexual, é muito infeliz. Agora, se ele estiver a estragar a vida às pessoas e depois for pôr um cinto de ligas e for sodomizado pela amante, é maravilhoso – e 90% deles são assim.

Ainda faz o Diácono e o Nelo.
O Nelo nasceu em 2000 e continua actual. Há uns que pela idade poderiam ter perdido o sentido. O Esteves está na idade certa, ou seja, quando o fiz, era novo demais para o boneco que deveria ser. Porque o humor, curiosamente, tem de ser verossímil, senão é só palhaçada. A imaginação e o disparate têm de ter lógicas de verosimilhança para a gente aceitar. E essa é também sempre uma das minhas lutas. É que os meus bonecos sejam verdadeiros. Porquê é que eu não posso dar o Nelo a escrever a ninguém? Porque a personagem não é entendida na sua plenitude. Todos os autores que trabalharam comigo, nenhum deles foi capaz de escrever para aquela personagem.

Experimentou que alguém escrevesse?
Experimentei sim. Mas a génese daquela personagem é muito mais profunda do que só aquela dicotomia “Ai, filha”, “Ai, um bombeiro”. Não, não é disso que se trata. É muito mais profundo. E a relação com a mulher ainda mais profunda é. Porque é verdadeiramente uma relação de dependência e de amor. Com os dramas inerentes às sexualidades, mas que decorrem à parte. Não é a base da relação. Não é esse drama. E, portanto, escrever para esse universo é uma coisa de tal maneira fina que só eu consigo escrever. Há ali sempre umas tensões muito curiosas. E que resultam naquele desencontro fascinante que leva às vezes os dois a estarem a falar cada um para o seu lado. Depois, a cultura dele é de pacotiha e ela é uma mulher muito culta. Portanto, às vezes estão a falar de coisas completamente diferentes ao mesmo tempo. E isso é tão… Modéstia à parte, é tão artístico e tão difícil de escrever que ainda não consegui delegar a ninguém.

Como olha para o estado do humor nacional?
Há imensos miúdos muito informados, muito diferentes. E já com um surpreendente conjunto de seguidores que lhes enchem os espectáculos e os teatros. É fascinante. Sigo-os com alguma atenção, mas eu não sou um grande espectador do humor. Sou um fã fanático dos velhos humoristas americanos, a maior parte deles já não são vivos. Mas há ali uma fase americana, nos anos 60 e 70, com génios absolutos. Com um tipo de ironia e maneira de construir piadas que me deixam de rastos. Para o humor físico não tenho nenhuma pachorra, nem sequer para o Charlie Chaplin, eu achava aquilo horroroso. Não sou um bom espectador do humor, até porque estou sempre a ver as coisas do lado científico. Agora, há um brilhante que morreu há pouco tempo, que era um australiano chamado Barry Humphries, que fazia um travesti chamado Dame Edna. Que é aquela velha inglesa que às vezes entra no camarote da rainha e brinca com o príncipe Charles. Enfim, é só genial. E é talvez das criaturas que mais me fazem rir.

Herman José
Fotografia: Francisco Romão Pereira / Time OutHerman José

E dos velhos humoristas americanos, pode dar um exemplo de alguém desse género?
Há um maravilhoso que fazia o chamado humor de insulto, que se chamava Don Rickles e era o favorito do Sinatra. E tenho no meu historial uma coisa absolutamente maravilhosa. O Don Rickles fazia a primeira parte dos espectáculos do Sinatra e quando o Sinatra veio ao estádio das Antas em 1994, o Don Rickles fui eu. Fiz a primeira parte do espetáculo, uma coisa completamente extraordinária.

Viemos aqui falar de uma carreira com 50 anos, mas ainda há estrada para andar. O que é que imagina nessa estrada?
Imagino manter o presente o mais possível. Não quero acrescentar nada, está tudo perfeito. Quanto mais tempo me mantiver fresco artisticamente, quanto mais tempo guardar esta felicidade de estar vivo, quanto mais tempo a minha mãe se mantiver bem, para mim é o ideal. Acho que vou ter imensas saudades desta época.

O Cá por Casa vai continuar?
Vai. Mas é conforme eu lhe digo, com dor. É como ir ao ginásio, ou seja é uma coisa que tem de ser feita, é importante fazê-la, faço com muito orgulho, sinto-me estimadíssimo pela RTP, mas é um trabalho doloroso.

Porquê é que é tão importante fazer?
Da mesma maneira que é importante algum exercício físico, para manter os músculos e as articulações vivas e densas. A televisão tem esse papel. É alta competição intelectual que mantém-nos frescos, activos e preocupados. O nosso cérebro é um músculo, se ele entra em preguiça vão-se embora as técnicas, a capacidade de concentração e uma quantidade de coisas que são essenciais serem mantidas para evitar o envelhecimento precoce. Ou então a pessoa reforma-se e desliga. Também é possível, há gente que fez isso. Podemos chegar à altura certa e dizer: está feito, foi óptimo, vou fazer como o meu cão. Enrolar-me aqui na relva a olhar para o céu, ir ali fazer cocó de vez em quando e mais nada.

Herman José & Big Band. Campo Pequeno. 4 e 5 de Outubro às 21.00. 20€-65€

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