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O azulejo denuncia uma data de inauguração falsa, fruto de um erro na pintura. “Ficou 1944, mas esta casa tem mais anos”, corrige o gerente da Frutaria Bristol, Alípio Ramos. Os cálculos apontam para a celebração do centenário em 2024, mas a data de fundação poderá ter sido em 1929, um ano após o encerramento do Bristol Club, “um cabaret que aqui havia”. É Alípio quem relata à Time Out como foram os últimos “40 e tal anos” nesta casa, que forneceu restaurantes históricos como o Tavares Rico (fechado desde 2019), o Gambrinus ou o Pap’Açôrda, mas também a TAP, e cuja fruta ainda hoje abastece o vizinho Pinóquio.
Nos anos 80, quando Alípio e a mulher, Miraldina Ramos, pegaram no negócio, havia sete funcionários a assegurar a distribuição não só de frutas, mas também de lampreias vindas de Lanhelas e dos primeiros salmões apanhados no rio Minho. “Telefonavam-me a contar que os tinham pescado e era cá que eles chegavam, porque havia clientes para isso.” Alípio mostra um artigo de imprensa que conta a história de um salmão com quase sete quilos vendido por 3800 escudos a um restaurante fino de Cascais. Também fala dos faisões que vendia para um restaurante do Bairro Alto, da montra de marisco que preparava todas as manhãs ou da carne de caça que pendurava na frente da loja na época do Natal. Há, ainda, referência aos melões casca-de-carvalho que chegavam no início do Outono ou aos frutos tropicais vindos por mar desde São Tomé e Príncipe, Angola ou Moçambique.
Hoje, a oferta da Bristol centra-se em uvas, pêssegos, bananas, melões ou cerejas, quase tudo nacional. Os preços são acima da média (nectarinas a 5,50€ ou pêra rocha a 3,90€), porque “são produtos de qualidade superior”, justifica o proprietário. Continuam a lá ir os poucos clientes habituais, moradores que ainda resistem numa Baixa moribunda de comércio tradicional, como conta a própria história recente da Rua das Portas de Santo Antão, onde proliferam armadilhas para turistas. Nos últimos anos, fecharam aqui casas como a Ourivesaria Santo Antão, a Cervejaria Solmar (cujo painel de azulejos está agora em restauro) ou o Restaurante Escorial, "uma casa de brinquedos, uma padaria, uma charcutaria, uma pastelaria", para não falar de espécimes de maior porte, como o Ateneu Comercial de Lisboa, o Cinema Condes (onde é hoje o Hard Rock) ou o Ódeon (cujo edifício está na fase final de reabilitação, para reabrir como hotel e restaurante), já na perpendicular Rua Condes.
Mais um hotel, menos casas tradicionais
“Na Baixa havia todo o tipo de casas e de comércio. Não tem nada a ver com a realidade de hoje”, lamenta Alípio Ramos, aos 78 anos, que conta que muitos estrangeiros que conheceram a cidade há uma ou duas décadas e que vêm hoje visitar lhe perguntam, à chegada: “Isto é Lisboa?”.
Isto é Lisboa. Mas menos característica, perante a perda consecutiva e acelerada de comércio histórico e tradicional. No edifício da Bristol, que vai fechar a 30 de Setembro, perdem-se também o Restaurante Gira-sol, que encerrou portas em Julho, o café Casa Sete e a pequena loja de roupa Onze Desportivo. Já a Ginjinha Popular, protegida pelo estatuto de Loja com História, troca a fachada voltada para as Portas de Santo Antão pela Travessa do Forno, ocupando o lugar do Gira-sol, por via de um acordo com os proprietários. Resta o restaurante A Provinciana, também Loja com História, que apesar de "algum receio", vai manter-se no prédio, conforme atesta Carla Fernandes, filha dos sócios-gerentes, à Time Out. "Se a loja fosse nossa era diferente, mas não é. Agora, como somos Loja com História estamos um bocadinho mais protegidos", comenta, não deixando de sublinhar que a Baixa se tornou um local "onde os turistas saem para ver turistas".
A causa de todas as saídas e mudanças é a criação do novo hotel do Benfica, no imóvel onde funcionou a sua antiga sede. "Trata-se de um edifício histórico que foi doado pelo clube à Fundação Benfica", comunicou o clube em 2023, adiantando que o projecto "vai garantir o reaproveitamento deste espaço simbólico tendo como conceito a história do Sport Lisboa e Benfica e invocará a memória colectiva dos sócios e dos adeptos do clube". No episódio da negociação com os arrendatários, Alípio Ramos conta que os proprietários "propuseram um espaço na lateral" do prédio (onde está a loja Onze Desportivo), para poderem continuar a actividade. "Mas para nós seria impossível. Não tínhamos condições, é muito pequeno”, explica o comerciante que, apesar dos 78 anos, planeava manter-se nas Portas de Santo Antão enquanto tivesse saúde. “Levanto-me todos os dias às cinco da manhã e volto para casa às sete, oito. Mas ainda me sinto bem”, conta, já antecipando que, assim que fechar as portas da Bristol, "vai deixar saudades". "Foram mais de 40 anos aqui, fizeram-se muitas amizades, construiu-se muita coisa. Os clientes são a minha família."
Loja sem história?
Apesar do portfólio de restaurantes que forneceu durante décadas, do facto de “tantos visitantes pararem para tirar fotografias, porque não há espaço igual em Lisboa” ou de detalhes como ter sido um dos décors do filme O Grande Elias (de Arthur Duarte, 1950), na sequência da candidatura da Bristol ao programa Lojas com História, criado para proteger o património comercial da cidade, a Câmara Municipal de Lisboa considerou por duas vezes que a frutaria não cumpria os requisitos necessários. O estatuto protegê-la-ia possivelmente até ao final de 2027, aos olhos da lei.
Na avaliação da Câmara e da Faculdade de Belas-Artes quanto à candidatura da Bristol a Loja com História, em 2017, a que a Time Out teve acesso, pode ler-se a atribuição de zero pontos no que respeita ao significado do estabelecimento “para a história comercial da cidade”. A remodelação que dotou o estabelecimento dos seus particulares azulejos pejados de uvas, melancias, pêssegos, bananas e cerejas também terá jogado contra a obtenção daquele selo de protecção. “À excepção da fachada que mantém as características Déco do projecto de 1928, toda a espacialidade foi alterada em 1992, nada restando do original”, pode ler-se, continuando mais à frente: “Há uma cena do filme O Grande Elias (...) filmada na loja” e “pode comprovar-se que a especialidade do estabelecimento foi bastante alterada”.
A decisão de não atribuir o estatuto foi contestada pela Bristol. O gerente diz não compreender a rejeição, ainda menos pelo facto de a vizinha Ginjinha Popular ter protagonizado uma de cinco candidaturas que “não foram sequer avaliadas” por existirem “processos de de urbanismo aprovados, deferidos ou em apreciação que não contemplam a manutenção do estabelecimento" (a título de curiosidade, da lista faziam também parte as discotecas Tokyo e Jamaica, que saíram da Rua Nova do Carvalho empurradas por um projecto na área hoteleira). Porém, mais tarde, em 2022, a Ginjinha viu aprovada a sua candidatura.
Ginjinha Popular não fecha, mas não será a mesma
“Tivemos de cumprir várias exigências [dos técnicos do programa Loja com História, para conseguir o estatuto], não foi à primeira”, explica à Time Out João Gomes, gerente desta tasca fundada em 1931. Há 32 anos na casa, que era dos tios vindos de Covas, Vila Nova de Cerveira, e que foi fundada em 1931, João confirma que também a Ginjinha Popular vai deixar as paredes onde cresceu para se instalar num espaço "mais moderno". “Vamos mudar para a Travessa do Forno, para um espaço maior, com mesas e lugares para sentar lá dentro. A esplanada é que vai ser menor, em princípio. Mas o conceito, os produtos e os funcionários mantêm-se. Vamos continuar a ter as bifanas, os pastéis, tudo.” E as pipas, os azulejos, a estantaria em madeira, a decoração? “Nem sei bem. Se pudermos continuar a ser Loja com História compondo o novo espaço com tudo isto, levamos. Se não, não sei”.
Aos 53 anos, João sabe que a vida da Ginjinha não teria descendência. “Os meus filhos não vêm para cá. Não é uma vida fácil. Não são só os polícias a ter uma vida pesada, o pessoal da restauração também devia poder reformar-se mais cedo”, desabafa. Por agora, acredita que, com o novo hotel, o negócio até pode melhorar. “Deu-nos vantagem ter o selo das Lojas com História na negociação, sem dúvida. Fizeram-nos uma proposta de renda com um valor acessível e, no Inverno, sempre vamos poder usar os lugares no interior. Mas, agora, só vamos ficar eu e o senhor Américo”, constata. Por senhor Américo entenda-se A Provinciana, o único lugar que se manterá na íntegra com o surgimento do hotel, sem sabermos até quando.
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