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A CRESCER – Associação de Intervenção Comunitária abriu um restaurante em Lisboa. Mais do que isso, começou um projecto-piloto de reinserção social para pessoas em situação de sem-abrigo. Fomos conhecer o espaço onde, além de comida boa, se servem novas oportunidades.
Isto é um restaurante. Tem um menu de comida de conforto e de partilha, o chef consultor é Nuno Bergonse, o executivo é David Jesus. Funciona no espaço do antigo restaurante Zé Varunca, a três passos da Avenida. Serve peixinhos da horta, rissóis de berbigão com salicórnia, pica-pau de polvo. Dúvidas restassem, chama-se É um Restaurante. Mas mais. É também uma escola, um projecto social que nasce pela mão da associação CRESCER para dar uma nova vida a pessoas em situação de sem-abrigo.
Foi através de um primeiro contacto da Câmara Municipal de Lisboa que o projecto começou a ganhar forma, em 2016. Quando perguntaram a Américo Nave, director executivo da associação, o que faria a CRESCER se tivesse um restaurante, respondeu que punha as pessoas em situação de sem-abrigo a dar comida à comunidade em geral em vez do contrário. “Trabalhamos com este público desde 2001 e um ¼ dos nossos colaboradores vieram desta situação de vulnerabilidade. Portanto sabemos a dificuldade que é integrar estas pessoas no mercado de trabalho e sabemos que temos excelentes colegas, com competências brutais, a trabalhar connosco”, conta Américo, sentado numa das mesas brancas com quadrículas verde-água do restaurante, um dia depois da inauguração para imprensa e convidados. Dois anos depois, o restaurante abriu dia 1, primeiro só para jantares, com o apoio não só da Câmara mas da Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa, do Instituto de Emprego e Formação Profissional, o Instituto de Segurança Social, a Adega Mayor, a agência The Hotel – Room for Ideas ou o Estúdio Jaca, estes últimos responsáveis pela arquitectura e remodelação total do espaço.
Faltava-lhes só um curador para a parte gastronómica e isso resolveu-se com o convite ao chef Nuno Bergonse, que já colaborava com a CRESCER com o projecto Marhaba, uma iniciativa de apoio a refugiados em Lisboa, começando com pequenos jantares e pop-ups, e que se juntou logo de início para criar tudo de raíz em conjunto com Américo e Alexandra Evaristo, a psicóloga que estará no restaurante a tempo inteiro nesta primeira fase, para resolver qualquer tipo de conflitos.
“Isto é um projecto-piloto portanto as regras do jogo somos nós que as vamos moldando. O Américo trata da parte burocrática e faz tudo isto acontecer, é o nosso cérebro. Eu trato do lado operacional ligado à restauração, juntei as peças certas, contratei as duas opções externas da equipa [um chef de sala e um chef de cozinha], e vou garantir que a comida vai sair boa. E a Alexandra trata da parte humana aqui do grupo, assegura o conforto”, resume Nuno, actual jurado do programa de televisão MasterChef Portugal.
Depois de contactarem todas as entidades que trabalham directamente com esta população mais vulnerável, apresentar o projecto, sinalizar pessoas, passaram por três fases de entrevistas, resolveram a situação de quem estava sem tecto e começaram o trabalho, com formações práticas na Escola de Hotelaria e Turismo e com uma formação para trabalhar competências básicas pessoais. “Temos várias pessoas que até já tinham tido experiência em cozinhas e atendimento de mesa. Mas os que nunca tinham feito nada do género, rapidamente se adaptaram. Neste momento é um grupo de 14, com uma média de idades à volta dos 35-40, e estão muito motivados e empenhados”, diz Alexandra.
Nas primeiras conversas sobre o menu, afinal isto É um restaurante, Américo admitiu que não percebia muito sobre restauração e deu apenas uma indicação a Nuno Bergonse: “Disse-me que não queria o arroz de pato mas também não queria o caviar. Foi essa a baliza e eu entendi perfeitamente”, diz o chef. O resultado é uma carta “segura”, com sabores portugueses. “Não podia usar técnicas e produtos estrangeiros, completamente desconhecidos e extravagantes. E nem estou a falar de caviares. Mas não vou usar um nabo daikon. Usamos produtos portugueses sem ser radicais. Se quisermos usar um molho de soja, usamos”, explica. A segunda ideia bem vincada é que esta teria de ser uma cozinha de conforto – “coisas que nos trazem memórias. Pratos mais clássicos, como os peixinhos da horta, as bochechas de porco estufadas, um creme de castanhas” – e, por fim, teria de ser tudo de partilha, pequenas doses. “Um prato por pessoa não faria sentido, dada toda a dinâmica do projecto”, continua, e por isso há doses pequenas e a recomendação é três pratos para cada duas pessoas.
Nesta cozinha de conforto e partilha, começa-se a refeição com o pão artesanal da Gleba, manteiga de tomate seco e manjericão e cenoura à algarvia (2,50€). Depois há salada de beterraba com laranja e sésamo (6€), tiborna com escabeche de pato e uvas tintas (7€), os peixinhos da horta com molho tártaro (5,50€) ou sopa de castanhas e funcho com marmelada para aconchegar (4,50€). As opções continuam com as ervilhas com porco bísaro e ovo escalfado (7,50€), a abóbora assada com queijo de cabra, cevada e avelãs (6,50€) ou o peixe de mercado crocante com açorda de tomate e algas (9,50€). O único prato assumidamente individual é o bife, com batata frita e verdes da época (14€). “Temos cozinha portuguesa e uma parte forte vegetariana. Comida simples”, reforça David Jesus, que elogia a equipa: “os cozinheiros normalmente já estão formatados, têm vícios de trabalho. Eles não têm e são muito humildes.”
Para rematar, três doces: o pudim de azeite e mel com sorvete de tangerina (4€), rabanada com caramelo e gelado de cardamomo (4€) e a mousse de chocolate (3€).
Com o restaurante materializado num espaço muito luminoso, com uma pintura em cima de azulejo em tons de verde de laranja, o maior desafio é “garantir o compromisso, as rotinas”, diz Nuno Bergonse. “Estas pessoas não estão no mercado de trabalho há muito tempo e por isso não tem rotinas. Não me preocupa não saberem encher um copo de vinho ou não fritarem batatas, isso vão aprendendo.” Daí o acompanhamento bem presente e diário.
A longo prazo, a ideia é ir rodando o grupo. Ficarem seis meses, um ano, o tempo necessário para serem autosuficientes e serem depois integrados em estágios profissionais noutros restaurantes, antes da integração normal no mercado de trabalho. “Uma das grandes missões do projecto é derrubar os estigmas que existem a relação a esta população. A nossa cultura tem enraízado que estas pessoas devem ser submissas e aceitar tudo. Temos de combater isso”, diz Américo, ressalvando que o reverso da medalha é ter de expôr as pessoas a isso. “O mediatismo é muito importante para sensabilizar a comunidade em geral. Mas, na verdade, isto É um restaurante. Trabalham cá pessoas sem-abrigo, sim, mas isso é um pormenor.”
Rua de São José, 56 (Avenida). 21 362 0192. Ter-Sáb 20.00-23.00.