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Poucos nomes tiveram o capacidade de atravessar gerações como Jean Paul Gaultier. O tom transgressor das suas criações, sobretudo nos anos 80 e 90, valeram-lhe o título de enfant terrible da alta-costura parisiense. O criador-fenómeno pode ter perdido força com o aparecimento de novas vanguardas, mas mais de meio século depois de ter iniciado um percurso na indústria, soube manter-se à tona, piscar o olho a uma nova geração de fashionistas, estabelecer novas colaborações artísticas e explorar novas linguagens criativas.
Fashion Freak Show, o musical sobre a vida e a carreira de Gaultier chega a Portugal esta quarta-feira e sobe ao palco do Sagres Campo Pequeno ao longo de cinco dias de espectáculo. Para o designer de 71 anos, montar um espectáculo de música, moda, luz e dança foi a concretização de um sonho antigo, uma história que remonta à infância, nos subúrbios da capital francesa. "Quando era pequeno, devia ter uns nove anos, lembro-me de ver a estreia das Folies Bergère na televisão, em casa das minhas avós. Havia raparigas a descer do tecto com collants de rede e plumas... Fiquei tão fascinado com aquilo que, no dia seguinte, na escola, fui apanhado pela professora a desenhar bailarinas. Ela colou-me os desenhos nas costas e fez-me ir a todas as salas. Em vez de uma humilhação, aquilo teve o efeito contrário. Acabei por me tornar bastante popular e os meus colegas começaram a pedir-me desenhos", contou Jean Paul Gaultier à Time Out, via e-mail.
O tempo passou e Gaultier continuou a coleccionar referências para o que um dia seria o seu próprio espectáculo. Pelo caminho, enquanto criador de moda, foi em cima da passerelle que mostrou ao mundo a teatralidade e a fantasia que a alta-costura também poderia assumir. "Alguns anos depois, vi Falbalas [Nas Rendas da Sedução, em português], um filme de Jacques Becker sobre uma casa de alta-costura na altura da guerra. Havia um desfile no final, fiquei apaixonado e percebi que era o que queria fazer. Tornei-me designer de moda e de alta-costura. Mas o teatro e o cabaret nunca me sairam da cabeça e, com o aproximar dos meus 50 anos de carreira na moda, chegou a altura de voltar ao meu primeiro amor. E não haveria melhor história para contar do que aquela que conheço melhor, a minha."
Fashion Freak Show subiu ao palco pela primeira vez em 2018, em Paris, onde somou nove meses de apresentações. Rumou a Londres, já depois da pandemia, para 52 sessões na Roundhouse, em Camden. O espectáculo passou entretanto pelo Japão e pela Alemanha. Portugal é o quinto país a receber o musical de Gaultier e com ele o próprio criador, que se juntou à digressão. "Estou bastante orgulhoso", admite à Time Out. "Honestamente, não esperava este sucesso."
Nos bastidores, o designer esteve envolvido em cada etapa da produção. Um trabalho que começou em 2016 e que passou, obviamente, pelos figurinos – cerca de 150, com seis a dez mudanças de guarda-roupa ao longo do espectáculo. Não faltam as referências a silhuetas icónicas do criador francês, os seios cónicos celebrizados por Madonna na Blond Ambition Tour, de 1990, às riscas de marinheiro. E suma, é como se um cabaret tomasse conta do atelier de Gaultier. De certa forma, foi o que aconteceu. "Estive envolvido em tudo. Escrevi a história de forma muito visual, por isso sempre soube exactamente como queria que fosse em palco. Fiz o casting, sabia a música que queria", completa. Para isso, rodeou-se de uma equipa de luxo – partilhou a direcção com Tonie Marshall, que morreu em Março de 2020, escolheu Thierry Suc para produtor e Marion Motin como coreógrafa.
Aos 71 anos, Jean Paul Gaultier pisa novos territórios criativos. A moda, em particular a marca homónima que criou em 1982, ficou para segundo plano a partir do momento em que se despediu das passerelles, em 2020. A maison, contudo, continua viva. Duas vezes por ano, convida um designer a desenhar uma colecção de alta-costura a partir dos seus arquivos. Em Julho, Julien Dossena cruzou os universos de Gaultier e de Rabanne. Em Janeiro do próximo ano, Simone Rocha tomará a dianteira do processo criativo. "Depois de 50 anos na moda, decidi retirar-me. Agora, tenho mais tempo para projectos no teatro e exposições de que gosto. Além disso, era altura de sair e deixar as gerações mais novas carregar a tocha. Nós designers temos de ler os tempos e a sociedade à nossa volta, estar sintonizados com as mudanças e transparecer isso no nosso trabalho. Não tenho o mesmo interesse na moda que tinha antes. Não estou nas redes sociais, por exemplo. E os grandes grupos tomaram conta e o negócio da moda mudou."
A partir de quarta-feira e até domingo, o Campo Pequeno recebe o espectáculo Fashion Freak Show, com os bilhetes a começar nos 20 euros. Entre 16 e 19 de Novembro, a produção fixa-se no Porto, na Super Bock Arena. "Quis contar a minha história através da música, da dança e da moda e mostrar que existem vários tipos de beleza e que a própria diferença é bela. E que, se fores verdadeiro contigo e seguires os teus sonhos, vais sentir-te realizado."
Sagres Campo Pequeno. Qua-Sex 21.00, Sáb-Dom 16.00, 21.00. Bilhetes a partir de 20€
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