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João Gonzalez: “A solidão é um tema bastante poético”

E eis que, no ano em que o cinema de animação português assinala 100 anos, uma produção nacional é pela primeira vez nomeada para os Óscares. Falámos com o realizador João Gonzalez e o produtor Bruno Caetano sobre ‘Ice Merchants’.

Renata Lima Lobo
Escrito por
Renata Lima Lobo
Jornalista
Ice Merchants
©DRIce Merchants
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Um pai e um filho moram numa casa no alto de um precipício e todos os dias saltam de pára-quedas para se deslocarem à aldeia, localizada na planície mais abaixo, para venderem o gelo que produzem durante a noite. Assim se resume a história de Ice Merchants, uma produção assinada por João Gonzalez, jovem realizador que à terceira curta-metragem da breve carreira conseguiu uma nomeação para os Óscares, a primeira na história do cinema português. Mas o filme chegou aqui com mais de quarenta prémios no bolso, incluindo um Annie, o mais conceituado prémio do cinema de animação, depois de dar a volta ao mundo em festivais.

“Os Óscares têm um factor mediático que é bom para promover o filme, porque mesmo as pessoas que não estão na indústria já ouviram falar dos Óscares. Está a ajudar bastante a divulgar e nós fazemos filmes para serem vistos por pessoas”, diz-nos João Gonzalez, num arranque de conversa. Bruno Caetano, produtor do filme – e também nomeado – com quem falámos noutra chamada por telefone, acrescenta: “É mais uma prova de qualidade e de talento da animação que se faz em Portugal. Se isto puder ajudar, por exemplo, o Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) a perceber que a animação portuguesa é o género de cinema que mais tem conseguido viajar pelo mundo, mais prémios tem conseguido, poderá ser interessante perceber se estão dispostos a aumentar a percentagem que a animação tem. Neste momento, somos o parente pobre do cinema português e era muito bom conseguirmos ser um pouco menos pobres.”

Esta nomeação não foi a única que se destacou na viagem que Ice Merchants tem realizado. Na Semana da Crítica do Festival de Cannes, que decorreu em Maio de 2022, a curta-metragem não só foi nomeada, como acabou por vencer o Leitz Cine Discovery Prize. “Estava em concurso com outras nove curtas de imagem real e é estatisticamente bastante raro uma curta de animação chegar a este ponto. Foi muito importante e, acima de tudo, foi o primeiro prémio que o filme teve, na sua estreia mundial. E isto depois abriu muitas portas para outros festivais. É um prémio bastante prestigiado”, explica Gonzalez. Bruno Caetano recorda como foi trilhado esse caminho. “Quando o João me disse ‘vamos tentar concorrer a todos os festivais qualificantes para o Óscar’, eu respondi ‘João, muito fixe, estou 100% atrás de ti, vamos tentar… Mas tens noção que estarmos sequer elegíveis a um Óscar é muito difícil, para não dizer impossível’. Agora, todos os autores sabem que é possível chegar lá.”

Ice Merchants
©A.M.P.A.S.Bruno Caetano e João Gonzalez, a caminho de Hollywood, todos aperaltados no almoço oficial dos nomeados para os Óscares no hotel Beverly Hilton, a 13 de Fevereiro.

Entre o som e a imagem

Gonzalez não começou pelas imagens, mas sim pela música. Filho de pianista, sabe tocar, e foi sentado ao piano que começou a criar com apenas quatro anos. Mas quando chegou a altura de escolher um caminho profissional, apontou as flechas à Engenharia Informática. Não entrou e foi parar ao curso de Multimédia, da Escola Superior de Media Artes e Design, onde descobriu o gosto pela animação. "Ao mesmo tempo, voltei a tocar piano. Na realidade, comecei a entrar no mundo da animação e a fazer as pazes com o mundo da música, tudo mais ou menos ao mesmo tempo. Sempre tive um amor enorme pela música, e juntar essa vertente ao meu trabalho na área de cinema foi bastante natural e orgânico."

Durante a licenciatura criou a sua primeira curta-metragem de animação: The Voyager (2017), que acabou por vencer um Prémio Sophia Estudante, na categoria curta-metragem de animação, assim logo à primeira. A segunda, chamada Nestor (2019), também premiada, já nasceu no âmbito do mestrado no Royal College Art, em Londres, onde Gonzalez estudava uma animadora que admirava: a polaca Ala Nunu, que mais tarde acabou por animar metade de Ice Merchants, tendo um papel fundamental na criação da curta. “Ainda antes de nos conhecermos, a Ala Nunu já estava a juntar-nos, de certa forma, à COLA”, lembra Gonzalez. A COLA é a cooperativa de animação por detrás de Ice Merchants, mas já lá vamos.

Em todas as produções, a banda sonora é composta por Gonzalez e é criada em simultâneo com a animação, como se uma nascesse da outra [já agora, a banda sonora de Ice Merchants pode ser escutada na íntegra no Spotify]. Na curta-metragem não há qualquer diálogo, apenas linguagens visuais e sonoras criadas pelo autor, que se sente “mais à vontade com a música do que a escrever”, embora não descarte a possibilidade de, no futuro, escrever um argumento. Por outro lado, confessa: “Este filme com diálogo não ia acrescentar nada e, de certa forma, até poderia desviar a atenção de outros factores mais importantes.”

Na sua página oficial de YouTube, disponibilizou um making of da curta-metragem, onde é possível conhecer melhor o processo de criação. Aí, Gonzalez explica que a animação, em oposição à imagem real, oferece uma liberdade maior de criar situações impossíveis que nos fazem pensar em temas reais. E parece haver sempre uma história de solidão ou isolamento nos seus trabalhos. Será um medo ou uma outra história que o acompanha? “Acho que a solidão é um tema bastante poético e que eu aprecio bastante. Está lá mais pela beleza do que propriamente pelo medo. Os meus filmes vão sempre abordar temas que me tocam de certa forma, mas tenho sempre a possibilidade de na animação usar esses ambientes mais surreais e bizarros como metáfora para falar sobre a vida real.” Ambientes desenhados em 2D, onde a profundidade é apenas emocional. “Acho que há uma beleza na imperfeição do desenho 2D. Gosto muito de perspectivas, de criar a sensação de profundidade, mas ao mesmo tempo acho o 3D demasiado perfeito.”

Colados somos mais fortes

Ice Merchants é uma das produções nascidas pelas mãos da cooperativa COLA, que junta um belo conjunto de talentos na área da animação. Mas no início era muito diferente, como lembra Bruno Caetano, o produtor de Ice Merchants e também realizador de filmes em stop motion, como O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto (2019), actualmente a peça central de um ciclo que decorre até Junho no Centro Cultural de Belém. “Em 2015, começámos com um propósito único de fazer formação. Todos nós tínhamos fonte de rendimento, trabalhávamos noutros sítios e isto era mais um complemento. Em princípios de 2016, fomos contactados pelo Miguel Araújo para fazer um videoclipe de Os Azeitonas que tinha sido escrito pelo Nuno Markl. Foi a partir desse Cinegirassol que a COLA se tornou um colectivo mais a sério. E só mais tarde, em 2018, com a produção de O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto é que nos constituímos como cooperativa”, conta, sublinhando orgulhosamente que trilharam “caminhos não trilhados antes”.

Bruno Caetano
©DR'O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto', de Bruno Caetano

A COLA tem superado as expectativas iniciais, quando tudo era uma incógnita. “A prova disso foi 2022, ano em que lançámos três curtas-metragens. O Ice Merchants, que estreou em Cannes; o L’Ombre des Papillons, da Sofia El Khyari, realizadora marroquina, uma co-produção com França que estreou em Locarno; e o Slow Light, dos realizadores Kijek/Adamski que estreou em Cracóvia e esteve agora, juntamente com o Ice Merchants, no Festival Internacional de Curta-Metragem de Clermont-Ferrand. São três filmes que têm tido um percurso muito interessante e todo o esforço que tivemos de há alguns anos para cá está finalmente a compensar.”

Bruno Caetano, que é também um dos fundadores da Seita, uma das maiores editoras de banda desenhada em Portugal – e também uma cooperativa – assumiu as rédeas da produção de Ice Merchants, ultrapassando fronteiras em busca de financiamento. “Nós tentamos estabelecer sempre co-produções. No caso da [produtora francesa] Wild Stream, tanto no Ice Merchants como n’O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto, o produtor francês Michaël Proença, que é luso-descendente, procura formas de financiamento adicionais e constitui equipa em França para desempenhar algumas funções, enquanto nós temos as funções mais importantes em Portugal. E conseguimos pagar melhor a quem trabalha cá connosco. Fizemos também no L’Ombre des Papillons, co-produção com a Am Stram Gram; com a Novanima fizemos agora o Herbe Verte, que ainda vai estrear; ou com o Slow Light, em que fizemos uma co-produção com a Polónia. Ou seja, estamos sempre à procura de formas de trazer mais financiamento para os projectos. Esta injecção adicional permite-nos trabalhar mais pausadamente e melhor nos projectos, para que eles saiam com a qualidade desejada.”

No final do ano passado, a COLA, juntamente com a Som e a Fúria, co-produziu a longa-metragem O Natal do Bruno Aleixo e este ano vai lançar nos cinemas Os Demónios do Meu Avô, de Nuno Beato, e They shot the piano player, uma co-produção da Animanostra. “Estas longas-metragens estão a ajudar a animação portuguesa, que na maior parte dos casos é apresentada no seu formato mais curto. Um formato mais abrangente que vai permitir que mais pessoas vejam o que se faz por cá.” Entretanto, Caetano tem um novo filme em pré-produção, em que se senta na cadeira de realizador, chamado Sequencial, e que apresenta uma “mistura de técnicas”, onde “o mundo real é feito em stop motion e o mundo dos sonhos é feito em animação tradicional”.

100 anos muito animados

O primeiro filme português de animação foi exibido há 100 anos, altura em que o ilustrador Joaquim Guerreiro desenhou O Pesadelo do António Maria, curiosamente no ano do nascimento da The Walt Disney Company. O seu fundador foi, aliás, o vencedor do primeiro galardão de Melhor Curta-Metragem de Animação, em 1931, com o clássico Flowers and Trees.

Mas, afinal, e apesar de todo este rebuliço em torno do primeiro filme português a chegar às nomeações dos Óscares, com que saúde se encontra a animação nacional? João Gonzalez oferece o seu ponto de vista: “No seu cariz autoral mais independente, temos um dos cinemas mais fortes do mundo. E é algo que para nós é um bocado estranho, porque sentimos que é mais reconhecido internacionalmente do que cá em Portugal. Estamos a evoluir bastante rápido, temos cursos de animação no secundário, de lá já saem trabalhos incríveis, muito melhores do que algumas coisas que eu fazia na faculdade. Precisamos de mais uma forcinha no que toca a longas-metragens e séries, mas acho que estamos a ir pelo bom caminho e temos muito talento.”

João Gonzalez
©DRIce Merchants, de João Gonzalez

Para Bruno Caetano, atravessamos uma fase muito importante. “Estamos a aproveitar o trabalho que foi feito nos últimos 25 anos e a chegar a uma fase do render da guarda. Jovens autores como o João têm uma cultura visual fortíssima, uma base de referências de elevada qualidade, estudaram em boas escolas, e antigamente este não era o caso.” Além de Ice Merchants, o produtor dá outros bons exemplos do que por cá se tem animado: “O Homem do Lixo da Laura Gonçalves ganhou o prémio de Melhor Animação em Clermont-Ferrand; O Casaco Rosa da Mónica Santos, que tem trilhado muitos e bons festivais; o Garrano, de David Doutel e Vasco Sá que esteve em Sundance… Isto tudo está a pôr-nos num nível elevadíssimo, comparando com países que têm capacidade de produção muito superior.”

A cerimónia dos Óscares acontece no dia 12 de Março, mas seja qual for o resultado, o cinema português venceu. Só falta levar mais avante o apoio à sétima arte.

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