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Jornalismo sério é aquele que é bem-feito, não depende do tema

A intervenção do director-adjunto da Time Out no Congresso dos Jornalistas, a 19 de Janeiro, a propósito da mesa-redonda “Desafios éticos do jornalismo hoje”.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
Director-adjunto, Time Out Portugal
Logótipo Time Out
Time Out Portugal
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“Bom dia. Agradeço o convite da Comissão Organizadora para aqui estar.

Antes de mais julgo importante dizer que houve uma minoria de jornalistas que tentou boicotar a minha participação. Vêem a minha presença como uma afronta ao Secretariado da CCPJ, que tem estado a retirar as carteiras profissionais aos jornalistas da Time Out.

Quero dizer a esse propósito que tentar impedir um debate sobre jornalismo é a atitude mais inesperadamente reacionária para se ter a propósito deste congresso de jornalistas, que se quer marcado pelos 50 anos do 25 de Abril. Gostaria por isso de saudar a presença de espírito de quem decidiu trazer este tema para discussão e dar-lhe contraditório.

Julgo importante explicar o que se passa, porque sei que a maioria não está a par. No final do mandato do anterior Secretariado, a CCPJ institucionalizou uma visão purista do jornalismo. Uma visão de castas, que não é nova. A ideia de que há jornalismo sério e depois umas coisas que o acompanham para descomprimir é velha, muito velha.

Nesse sentido, a CCPJ decidiu que na Time Out não se faz jornalismo e começou a indeferir os pedidos de renovação das carteiras profissionais. A CCPJ usa dois argumentos. O primeiro é individual: a informação que cada um de nós produz não é jornalismo, é publicidade e está alinhada com os interesses comerciais dos sujeitos das notícias.

O segundo argumento é de fundo: diz a CCPJ, a Time Out é uma publicação que visa “predominantemente promover actividades, produtos, serviços ou entidades de natureza comercial ou industrial”. Portanto, ao abrigo do Estatuto do Jornalista, não pode empregar jornalistas. Mas não sei com que autoridade o diz. A Time Out é uma empresa jornalística registada na ERC e, tanto quanto sei, a CCPJ avalia jornalistas, não publicações.

Como adivinham, nós discordamos. Primeiro, entendemos que o tipo de jornalismo que a Time Out faz é isso mesmo: jornalismo. Segundo, se mais não fosse, porque a CCPJ trata de forma desigual meios que produzem o mesmo tipo de jornalismo, que amiúde estão com os jornalistas da Time Out nos mais diversos trabalhos. O Expresso, o Público, o Observador, o Jornal de Notícias, o Correio da Manhã, a Visão, a Sábado

Este tipo de jornalismo é transversal a todas as publicações. Aliás, tipos de jornalismo, plural: jornalismo local, de cultura, de gastronomia, de viagem, de moda e o chamado jornalismo de serviço, que oferece aos leitores conselhos práticos para o seu quotidiano, de coisas para fazer a sugestões de bem-estar e às mais variadas listas de compras.

Significa isso que os jornalistas das publicações generalistas ficam sem carteira? Não. Porquê? Porque convivem com jornalismo sério. A CCPJ entende que um jornalista pode fazer o que chama de publicidade, desde que na companhia certa. Para descomprimir.

Como discordamos, recorremos aos tribunais. Os processos são morosos e ainda nenhum foi a julgamento. Para já, as duas providências cautelares que transitaram em julgado foram favoráveis aos jornalistas da Time Out, o que significa que a CCPJ teve de lhes restituir as carteiras profissionais. Num dos acórdãos, os juízes dizem, aliás, que a interferência de um regulador “no estatuto editorial de publicações, definindo quem se insere no ‘verdadeiro jornalismo’”, é um “passo que constitui um precedente temerário e arriscado”.

Toda esta introdução é chata. A minha intenção não é discutir a Time Out nem esgrimir argumentos com os elementos da CCPJ que estão na sala. Mas foi por isto que me convidaram. Foi neste contexto que me pediram para vir aqui falar dos limites do jornalismo. Ora, o que tenho a dizer sobre isso é simples: o jornalismo é uma esfera, não tem limites.

Qualquer assunto pode ser objecto do jornalismo, do extermínio na Palestina ao fungo milionário que se pode comer nas Avenidas Novas. Repito: todo e qualquer assunto, desde que a informação seja tratada no quadro de valores do jornalismo, isto é, com isenção, rigor, respeito e independência. Se as pessoas querem ser informadas sobre política, economia, educação, tecnologia, futebol, música, restaurantes, lojas ou tendências culturais e de consumo, o jornalismo tem de encontrar formas de as informar sobre esses assuntos.

Se não encontrarem resposta no jornalismo, as pessoas vão recorrer a outras fontes sem pensar duas vezes; vão fazê-lo achando que estão a receber informação fidedigna. Mas sabe-se lá quem ocupará esse espaço sem regras. Aliviar certos temas dos deveres jornalísticos é um ataque ao direito à informação, mesmo se estiverem em causa queijarias.

Os leitores e o interesse dos leitores não são um pormenor. O jornalismo não é um bem público em si mesmo. Não começa e acaba com a produção de informação. Se não tiver os leitores em vista, pode fazer um escrutínio exemplar que não serve a democracia.

O jornalismo de lifestyle – para usar a expressão maldita – existe em todo o mundo. Vai continuar a existir. O Guardian faz listas de meias com preço e link para a loja. O New York Times tem jornalistas dedicadas a experimentar colchões. Como? Fácil: são escolhas determinadas por critérios exclusivamente editoriais. De resto, o jornalismo de lifestyle não é um fenómeno recente nem gerado online. É antigo. Andamos assim tão distraídos?

O jornalismo de lifestyle tem desafios específicos, é verdade, e deve ter regras claras. Os desafios podem existir por factores externos ou internos. Os primeiros são, por exemplo, a clássica pressão dos anunciantes. Isso tem de ser resolvido de forma integrada em todo o sector, para termos empresas mais saudáveis. Mas os segundos vão muito além da resposta óbvia, que por norma é a falta de meios e de pessoal, e é a precariedade.

O principal problema do jornalismo de lifestyle podem ser os próprios jornalistas que, seja pelos temas, seja pelo tom descontraído, pensam que não têm de ser exigentes com o seu trabalho. Mais: o jornalismo de lifestyle não é para ser feito por qualquer um, numa semana mais parada ou para aproveitar um fim-de-semana grátis. É para ser feito por jornalistas especializados. Não nos ocorreria mandar o jornalista de cinema entrevistar o governador do Banco de Portugal. Então porque é que vai o da justiça safar um hotel, ou um bar?

Os directores e editores têm responsabilidade, naturalmente. E não me excluo do problema. A Time Out tem debilidades. Mas há práticas de que estamos conscientes e que combatemos activamente. Por exemplo, privilegiar certas agências. Ou aceitar que pessoas da publicidade, das relações públicas ou mesmo empresários, que já foram jornalistas da área, continuem a escrever sob o manto da independência que as marcas jornalísticas conferem. Ou a ausência de uma assinatura que se responsabilize pelo que está escrito. No jornalismo de lifestyle, é nestas questões que devíamos estar focados.”

Primeira adenda

Reagindo a esta intervenção, a presidente do Secretariado da CCPJ, Licínia Girão, disse no Congresso dos Jornalistas que não há perseguição à Time Out. Tinha decidido não ser deselegante neste encontro. No entanto, tendo em conta que um dos argumentos já utilizados pelos membros da CCPJ, de que bastaria um artigo fora das regras – do que entendem que viola as regras –, não me coibi de lembrar o seguinte a quem estava presente na sala: a anterior presidente do Secretariado da CCPJ, que deu início ao processo de cassação das carteiras profissionais aos jornalistas da Time Out, escreveu artigos de lifestyle antes de assumir essas funções e já voltou a escrevê-los depois de abandonar essas funções. Não consta que tenha ficado sem carteira.

Segunda adenda

Num painel do Congresso dos Jornalistas sobre a regulação dos media, no qual muito lamento não ter conseguido estar presente, Licínia Girão aventou a possibilidade de criar uma “carteira cor-de-rosa”. É a prova de que quer implementar um sistema de castas entre os jornalistas. Pior: ao ímpeto censório de quem tentou impedir a minha presença no Congresso, a presidente da CCPJ acrescentou uma proposta sexista. Naturalmente, o cor-de-rosa não é uma cor feminina. Mas é exactamente o fundo do que aqui se sugere: o jornalismo de lifestyle é de segunda categoria e para mulheres. É inaceitável, sobretudo na boca de quem pensa que está deste modo a defender a democracia.

Direito de resposta: “Jornalismo sério é aquele que é bem-feito, não depende do tema” – Publicação por deliberação da ERC

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