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Quando o prato de cenoura em diferentes texturas com leite de caju se começou a destacar no Belcanto, o restaurante com duas estrelas Michelin de José Avillez, entre pratos de carne, peixe e marisco, o chef percebeu que havia um caminho a desbravar no universo dos vegetais. Não que não o soubesse antes, mas num restaurante como o Belcanto não havia espaço para o fazer com a dedicação necessária. Muitos testes depois, Avillez abriu este mês o Encanto, na porta ao lado do Belcanto, que é 100% vegetariano e quer ser acima de tudo “um restaurante gastronómico bom”. “Se me perguntar se eu acho que é um restaurante que pode ter uma estrela ou vir a ter uma estrela? Acho que sim, sem dúvida.”
A meio da semana, a nova aposta de Avillez tem a casa bem composta. Alguns dos comensais chegaram aqui depois de não conseguirem mesa no Belcanto. A experiência está longe de ser a mesma, mas o que chef faz no Encanto também é alta-cozinha. Não há pratos à carta, apenas um menu de degustação com 12 momentos (95€), que pode ser acompanhado com uma harmonização de cinco (45€) ou oito vinhos (65€), maioritariamente biológicos e biodinâmicos, de pouca intervenção. “Segue uma estrutura clássica de um menu. Tem uns snacks mais divertidos, mais criativos, com uma utilização maior de técnicas de cozinha, com alguma doçura, acidez, crocância, para despertar as papilas gustativas”, começa por explicar o chef. “Depois avançamos com entradas frias, entradas quentes, pratos principais e sobremesas. Acho que é isso também que faz com que as pessoas se sintam muito confortáveis, mesmo não sendo vegetarianas, a fazer este menu”, continua, seguro de que o Encanto proporciona uma experiência muito diferente daquela que se tem habitualmente noutros restaurantes vegetarianos.
“A maior parte dos vegetarianos que existem defendem-se muito em muitos ingredientes e muitos temperos. Nós tentamos ir para menos ingredientes, temperos q.b., puxamos pelo produto, pelo ingrediente em si. [Somos] um bocadinho mais clean. É um bocadinho a linguagem do Belcanto passada para o mundo vegetariano”, justifica o chef, que faz questão de frisar uma e outra vez estar numa constante aprendizagem. “Continuamos a aprender e vamo-nos moldando e crescendo. Isso aconteceu muito na minha vida, há muitos anos, com o Tavares, por exemplo, onde iniciámos praticamente uma alta-cozinha portuguesa. De repente, revejo isto a iniciar uma alta-cozinha vegetariana, começamos a aprender outra vez de novo.” E explica: “Não é que não tenha aprendido ao longo destes 15 anos, aprendemos todos os dias, mas não são as primeiras reacções. Isto é a primeira reacção a um produto novo, acabado de lançar. Se calhar estou a ser um bocadinho pretensioso, mas sinto isso. Começámos um percurso há 15 anos e agora estamos a iniciar outro, paralelo.”
O maior desafio, explica Avillez, foi mesmo encontrar a harmonia e a melhor combinação entre pratos num jogo que se quer tanto de sabores, como de texturas e temperaturas. Perceber o que é mais disruptivo e o mais óbvio. “Por exemplo, a gema com o tupinambo e a trufa, para quem gosta de ovo, está sempre ganho. A couve [coração, que acompanha com milhos de cebola e queijo da ilha], em que há de repente pessoas que não acham tanta graça e outras que dizem que é o prato preferido. Depois há uma guerra, que é engraçada. Há pessoas que têm achado o merengue [servido na sobremesa com creme de pinheiro e kumquat] um bocadinho doce. Esse mesmo merengue com mais açúcar numa refeição onde se tenha carne e peixe, não se sente que é doce”, conta o chef, explicando que no Belcanto há um merengue que partilha a mesma base da receita e leva ainda mais açúcar, e sobre o qual até hoje nunca ninguém se queixou de ser doce. “Isso é muito interessante porque vamos aprendendo. Aprendemos quando criamos o prato e o cozinhamos, mas depois, quando começamos a servi-lo e a ouvir o feedback, continuamos a aprender.”
Avillez rejeita analogias entre os pratos que chegam à mesa, embora compreenda que exista quem as faça. Seja a couve coração que faz lembrar um bacalhau ou o folhado de cogumelos, cujo molho, bem reduzido, podia ser um molho de carne. Nada é feito para substituir seja o que for e todos os pratos valem por si. E voltamos ao prato de cenoura, azeitona e leite de pinhão. “As pessoas faziam [no Belcanto] o menu de 12 pratos com carabineiro, pombo, bife, leitão, robalo, e de repente um dos pratos que mais assinalavam era aquele. É um dos meus pratos preferidos também”, aponta o chef, que faz questão de combater a ideia de que “é preciso ir para carne, peixe ou marisco, para fazer um grande prato”. “E por isso começámos nesta cruzada de tentar fazer um restaurante baseado essencialmente em vegetais.”
No menu do Encanto, cada prato tem uma cor, cada momento é uma descoberta. Acontece com uma espécie de tártaro de beterraba com batata doce e Dijon, mas também com o caril verde, legumes verdes e citrinos verdes, ou o arroz com trufa preta, espinafres e manteiga de ovelha.
E se o prato de cenoura é partilhado entre o Belcanto e o Encanto, José Avillez não fecha a porta a mais trocas. “Principalmente, obviamente, no mundo vegetal lá. Nós não temos um menu oficial vegetariano no Belcanto, mas vamos tendo vegans e vegetarianos que nos pedem, e nós adaptamos. E agora essa nossa adaptação será melhor e é mais fácil porque fizemos um percurso de aprendizagem muito grande nestes meses no desenvolvimento do Encanto.”
No Encanto também se fazem adaptações. “Talvez um dia possamos ter um menu vegan, que testámos, temos alternativas na cozinha para adaptar, mas o que quero ter na carta, por enquanto, é um menu vegetariano.”
Cada coisa a seu tempo, até porque Avillez não tem dúvidas de que o desafio é maior neste restaurante. O chef fala não só do desafio de se chegar ao fim do menu a sentir que se fez uma grande refeição sem ter proteína animal, como da necessidade de se acompanhar de forma mais intensa a sazonalidade dos produtos. “Temos legumes que duram um mês, há uma mudança maior, ou pelo menos há adaptações dos pratos com mais regularidade pelo fim de um determinado ingrediente e pelo início de outro. Temos pela frente muitos desafios interessantes de novos produtos que vão aparecendo.”
É por tudo isto que Avillez acredita que o Encanto é para todos aqueles que gostam de comer, vegetarianos ou não. Abrir este restaurante no espaço do Canto, o projecto que juntou o chef aos músicos António Zambujo e Ana Moura, não foi uma necessidade. “Nós gostamos de nos reinventar e de alguma maneira levantar a fasquia.” Da mesma forma que diz não correr atrás do Guia Michelin, apesar de não duvidar da capacidade do restaurante. “Não corremos atrás disso. Corremos atrás de outra coisa, que é os sorrisos das pessoas que se sentam às nossas mesas. E aqui, neste caso em particular, em fazer algo que não é a nossa zona de conforto, mas que pode passar a vir a ser.”
Canto de pouca dura
Foi no início de 2020 que José Avillez abriu as portas do Canto, o restaurante que o juntava a António Zambujo e Ana Moura, cruzando “as duas grandes invenções do universo”, a música e a cozinha. Pouco tempo depois, a pandemia trocava os planos e o Canto nunca mais veria a luz do dia. Hoje, é o Encanto. “O Canto foi talvez dos projectos mais espectaculares que fizemos até agora e às vezes o tempo que dura não é o mais importante, é a intensidade com que ele é vivido”, diz o chef, para quem o restaurante tinha um conceito assumidamente para diversão dos envolvidos e “para apoiar a cultura portuguesa, a música e esta ligação à gastronomia”. “Era um conceito que seria certamente deficitário financeiramente, não era possível fazer com que ganhássemos dinheiro. E com a pandemia, e todos os desafios que nos foram postos, tivemos que fazer escolhas e fechámos, mas tenho o bichinho de voltar um dia de alguma maneira, se calhar num espaço com mais lugares, para rentabilizar.”
Largo de São Carlos, 10 (Lisboa). 21 162 6310. Ter-Sáb 19.00-22.30
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