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Fundador da extinta revista de cinema Premiere, lançou recentemente um livro de fotografias do seu bairro, Campolide. José Vieira Mendes é detentor de um vasto espólio de memórias de Lisboa, e não só, e agora decidiu partilhar com a cidade mais de duas dezenas de imagens a preto e branco, registadas com a sua primeira câmara fotográfica (uma reflex 35 mm que ainda guarda consigo). Reunidas no Arquivo Municipal de Lisboa – Fotográfico, estas fotografias recordam uma Lisboa do início dos anos 80, num país onde a democracia tinha praticamente acabado de chegar. A exposição “Aqui Lisboa: Anos 80” pode ser vista até 28 de Janeiro do próximo ano, e pode também ser a primeira de muitas que sairão do arquivo pessoal de José Vieira Mendes. Falámos com o autor.
Estas imagens já tinham alguma vez sido apresentadas ao público?
Não. É a primeira vez que são mostradas ao público e na verdade foi a primeira vez que as ampliei em grande formato 30x40. Ficaram durante muitos anos nos negativos em 35 mm e em provas de contacto.
Tem por hábito dar voltas ao arquivo ou redescobriu estas imagens recentemente?
Agora que tenho mais disponibilidade profissional, tenho vindo a organizar o meu portfólio de imagens de muitos anos, cerca de 40 anos (estas são de 1982/83), desde o analógico ao digital. Essas 22 imagens fazem parte do meu arquivo de negativos em 35 mm e de fotografias que tirei quando, com 22/23 anos (agora tenho 61 anos), frequentava o curso do Instituto Português de Fotografia. Ainda tenho mais fotografias a preto e branco dessa altura e de outros temas sem ser Lisboa e, até, alguns estudos sobre a luz e a abertura. Eram exercícios de estudo e de estilo. Enfim, nessa altura queria ser fotojornalista. Porém, a minha vida seguiu outro rumo no jornalismo cultural escrito e na crítica de cinema, mas nunca abandonei a fotografia. Tenho um grande portfólio que passa por coberturas dos festivais nacionais e internacionais de cinema, rodagens de filmes, retratos de actores e realizadores portugueses, muitas viagens, cidades e pessoas em acção que fotografo como se fossem personagens de filmes. Tenho uma razoável colecção de máquinas fotográficas, desde analógicas em formato 35 mm ou 6x6, até algumas das melhores máquinas digitais. Também uso muitas vezes a câmara do meu telemóvel, que é maravilhosa, e tenho conseguido resultados espantosos. Adoro escrever, mas as imagens são a minha paixão.
Fala de um vasto conjunto de imagens, a partir do qual seleccionou as que estão expostas no Arquivo Municipal. Como foi feito o escrutínio?
Tenho bastantes negativos a preto e branco. Acho que não consigo sequer contabilizá-los… Fiz uma selecção um pouco aberta e acho que não escolhi nem as melhores, nem as que gosto mais. Foi uma experiência, para avaliar os resultados, esperando ter mais oportunidades de mostrar publicamente as que permanecem ainda inéditas. Ou seja, espero fazer mais exposições ou até um livro. Veremos?
Acordava de madrugada para fotografar “bocados” de Lisboa. O que o fazia levantar tão cedo? E o que esperava encontrar?
Levanto-me sempre cedo, mesmo para estudar ou escrever. Não gosto de fazer noitadas, ou quando as faço, faço as directas. Sim eram bocados de uma Lisboa que estava a mudar muito rapidamente, na euforia e modernidade dos anos 80, com a nossa entrada na CEE, mas também com uma certa inércia, com as pessoas ainda vestidas de cinzento da Feira da Ladra, com as peixeiras cabo-verdianas no Cais da Ribeira, ou com o Tollan encalhado ali em pleno Cais das Colunas, ou melhor, quase em frente à Ribeira das Naus, que nunca mais saía de lá. Era um pretexto divertido e gozado de ir à Baixa: “Eh pá bora ver o Tollan!” Não esperava nada… Ia fotografando, na verdade registando de uma forma nostálgica um tempo que estava a passar por mim, numa altura também bastante decisiva da minha vida pessoal e profissional. E também académica: foi nesse ano de 1983, que finalmente entrei na Faculdade em Comunicação Social, no curso que queria exactamente estudar. Mas nem todas foram feitas de madrugada. Tenho desde sempre e mantenho esse hábito de acordar cedo, admirar a luz, o nascer do dia, e caminhar, por uma questão de bem-estar, saúde e equilíbrio mental e criativo. Sobretudo em Lisboa, porque é a minha cidade e quanto mais conheço outras cidades, mais gosto da luz de Lisboa. Mas faço o mesmo quando viajo para outras cidades. Adoro a luz da manhã, começar a viver bem cedo para que os dias sejam longos.
Recentemente foi co-autor do livro de fotografias I ︎love Campolide. Daqui a 30/40 anos, mais ou menos a distância dos dias de hoje para os anos 80, como imagina Campolide?
O I ︎love Campolide é também uma pequena homenagem à minha família e à minha terra, Campolide, que era nos anos 80 quase uma subúrbio da cidade, embora estivesse e esteja perto de tudo. Na verdade, nessa altura, eu era um puto de bairro à descoberta da cidade e das suas mudanças, num momento de mudanças também para mim. O livro é um regresso nostálgico às minhas memórias e uma espécie de mapeamento fotográfico do bairro também para memória futura, dos tempos da pandemia. É também uma partilha e um voto de amizade com o meu amigo Jorge Lima Alves, que me ensinou muito da profissão de jornalista e também de fotógrafo. Não imagino como será Campolide daqui a 30 ou 40 anos, mas espero que seja um bairro mais inclusivo e valorizado do que é actualmente, com mais árvores, com uma livraria, um centro cultural de proximidade e um cinema, como o velho Campolide Cinema, que foi a minha cinemateca de bairro, quando era miúdo. Acho que ainda há espaço para existirem cinemas de bairro, mesmo com as plataformas.
Que imagens tem no seu arquivo que estejam a caminho de mais uma exposição ou um livro? Poderá nascer uma série “Aqui Lisboa” que abranja mais décadas?
Não sei se de muitas décadas, mas tenho fotografado Lisboa de uma forma quase obsessiva. Também tenho fotografado outras cidades, no entanto não me canso de fotografar Lisboa e às vezes até os mesmo locais, porque encontro sempre algo de diferente, nem que seja na luz, nas horas do dia, nas estações do ano. Lisboa é tão bonita e fotogénica. É a forma que encontro de juntar o útil ao agradável: caminhar para fazer exercício e fotografar (às vezes também filmar).
Actualmente é fotógrafo a tempo inteiro ou desenvolve outros projectos?
Sou jornalista e crítico de cinema há mais de 25 anos. Sou fotógrafo mais por intuição. Fui director-fundador da Premiere e dirigi-a durante oito anos, praticamente até ter sido fechada, em 2007. Actualmente, sou editor da MHD, uma revista de cinema online, e continuo a cobrir os três principais festivais de cinema: Berlim, Cannes e Veneza. Escrevo sobre cinema, críticas, faço regularmente comentários de cinema na informação da RTP, faço programação de cinema para mostras e festivais, documentários como o Gerações Curtas!? (2012) ou o Mar Urbano Lisboa (2019), curtas experimentais (tenho duas prontas), escrevo guiões, fotografo, estou a organizar o meu portfólio fotográfico e viajo bastante. Estou numa fase da vida que me permite, pelo menos para já, fazer o que me apetece. Na verdade, não paro.
Desde a década de 80, o que sente ter piorado e melhorado em Lisboa?
Não tem comparação, Lisboa está obviamente muito, mas muito melhor que nesses anos 80. Esses anos e a década seguinte. Os anos 90 foram cruciais para essa mudança e para que a cidade se tornasse, apesar de tudo (a perfeição não existe e independentemente dos poderes políticos e autárquicos que a governaram), uma das cidades mais interessantes e com melhor qualidade de vida da Europa, senão do mundo. Estou à vontade para dizê-lo. É verdade, o turismo de massa pode estragar tudo, os lisboetas estão a ser expulsos da cidade, os nossos salários são baixos, é difícil para os jovens viver na cidade com as rendas de casa muito elevadas, o estacionamento, as ciclovias... Enfim, as grandes discussões do antes e depois das eleições autárquicas. Na verdade, sempre foi difícil começar, mesmo nos anos 80. Mas era mais difícil viver numa cidade cinzenta, conservadora, que não dava aos jovens muitas oportunidades e muito menos esperança. Vejam os filmes: Variações ou Bem Bom, por exemplo. Agora acho que as coisas estão muito melhor para todos. Mas isso é uma longa discussão, e teríamos pano para mangas.
E por último uma provocação: a cidade corre o risco (bom ou mau, consoante o ponto de vista) de regressar aos anos 80 em alguns aspectos?
Jamais.
Arquivo Municipal de Lisboa – Fotográfico. Rua da Palma, 246. Seg-Sex 10.00-18.00. Entrada livre.
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