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Intimista e revelador são talvez as melhores palavras para definir Latência. O primeiro álbum de xtinto, nome artístico do rapper Francisco Santos, foi lançado na passada sexta-feira e, entre notas auto-biográficas e uma reflexão sobre actual estado da cultura no país, quer reafirmar o jovem autor, de 25 anos, como uma das novas promessas do rap nacional.
Fruto de um trabalho de longa duração – “arrastado naturalmente e sem grandes preocupações”, nas palavras do próprio artista –, no seu disco de estreia, xtinto quis ilustrar as dificuldades e a desvalorização sentida pelo sector da cultura e pelos próprios artistas, nos últimos dois anos, ainda que essa não seja a temática que mais sobressai ao longo das 12 faixas que compõem Latência. Os temas começaram a nascer em Abril de 2020, num processo criativo se estendeu até ao início deste ano, no caso de canções como "Marfim" e "Katrina", disponibilizadas em todas as plataformas de música nas últimas semanas. “Trata-se de uma viagem e a ambiência da capa do álbum, aquela mancha com várias caras e moods, representa isso”, explica o rapper, em entrevista à Time Out. Uma viagem por momentos e espaços que compõem as memórias do autor.
xtinto encara o novo álbum como consequência de uma “procrastinação saudável”. Com ele, em estúdio, estiveram outros nomes do hip hop português, em particular os membros da cooperativa musical que ajudou a criar há um ano. Alguns têm mesmo o nome inscrito nos créditos do disco. “Toda a munnhouse está incluída. O Benji Price no som 'Éden', Mike El Nite na faixa 'Iglu', e o Wugori no 'Tontura'”, esclarece. Um projeto de interacções, profundamente intimista e familiar. “Este álbum dá para perceber que é bastante íntimo. Tenho lá alguns kits de vozes de pessoas que são família, mesmo não sendo.”
“Foi um projeto que se foi adiando e adiando, para que ficasse mais lapidado", conta. “Depois, chega ao ponto em que, lá está, desiste-se da obra, não se trabalha mais e está na altura dela ver a luz do dia.”
Apesar de "Cadáver", single lançado antes do álbum, ter um significado especial, foi com "Katrina" que sentiu o projecto completo. “Acho que se tivesse de fazer outro vídeo e outro single, seria o 'Katrina'. Provavelmente, ressuscitaria alguns alter egos e fazia aí um universo paralelo, em que a narrativa não tivesse causa e ficasse sempre em loop.”
Latência foi apresentado na passada sexta-feira, nos Estúdios Nirvana, em Oeiras, lado a lado com uma exposição que contou com 11 artistas de diferentes áreas. Cada um deles foi desafiado a criar uma peça a partir de uma faixa do álbum. Foi o caso da designer de moda Beatriz Costa, que através de um colete deu forma ao tema "Iglu", ou de Maria Tristão, responsável pela tela inspirada na faixa "Katrina". “A ideia surgiu de não querer fazer uma listening party no sentido mais convencional, porque achei que este álbum não pedia isso. Queria que as pessoas entrassem, degustassem, pudessem ouvir as faixas quantas vezes quisessem."
A relação com a música surge desde cedo, aos 14 anos, quando começou a ouvir rap incessantemente. O bichinho cresceu, incentivado pelas sessões de improviso com os amigos. Muitos deles acabaram por resultar em letras originais. Foi em Ourém, onde cresceu, que deu os primeiros passos na música. “A cidade não tinha movimentos de hip hop, gostávamos do estilo, ouvíamos e decidimos começar a fazer aquele clichê de mandar uns improvisos, escrever e gravar. Fomos nós que criámos o movimento em Ourém”, comenta o artista.
Mais tarde, com apoio de Benji Price, também criador da produtora Think Music, Francisco rumou à capital com vontade de solidificar a carreira. Envolveu-se no universo do hip hop, acabando por criar a munnhouse, juntamente com outros artistas. “As coisas foram evoluindo gradualmente. Sabe bem, sabe a mérito”, reflete. xtinto abraçou a música, como uma necessidade de se expressar e de libertar os seus pensamentos. No rap, encontrou a melhor maneira de o fazer. "É uma forma de purgar os sentimentos que me inquietam e as coisas que estão menos bem, é isso que me dá o trigger para escrever.”
Quanto às letras, são maioritariamente autobiográficas, inspiradas em experiências pessoais e no que o rodeia. Sentimentos que o inquietam ou citações que, porventura, ouve de outrem são o ponto de partida para muitas das suas composições. “Neste álbum, acho que fica bem explícito esta veia", remata.
Apesar de se enquadrar no hip hop, xtinto não deixa de parte a vontade de explorar outros estilos. Aliás, o single "Saia", em colaboração com Stereossauro, prova esta heterogeneidade musical. Para o rapper, a evolução é uma questão de diversidade. "Cada vez mais, estamos a ver o hip hop a convergir com outras coisas e eu nunca fecho portas à liberdade criativa. Não faz parte da minha pessoa. Acho normal que a minha música vá crescendo, em forma de metamorfose”.
xtinto lançou-se em 2019 com dois EP's: Inacabado e Ventre. Mas foi com o primeiro que atingiu a realização enquanto artista. Uma reflexão sobre “coisas que não se finalizam, desistem-se só”, como explica.
Levar Latência a vários pontos do país e fazer crescer a munnhouse são os grandes planos de Francisco Santos para 2023. Sem certezas, prevê ainda o lançamento de novas músicas até final deste ano. “É ir escalando gradualmente, como temos feito. Vale a pena aguardar.”
Texto editado por Mauro gonçalves
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