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Ligados às Máquinas: “É preciso puxar mais pelo lado da capacidade e menos pelo da incapacidade”

‘Amor Dimensional’, o primeiro álbum dos Ligados às Máquinas, sai esta sexta-feira. Paulo Jacob, musicoterapeuta e coordenador do grupo, conduz-nos por esta “orquestra de samples” disparados a partir de músicos em cadeiras de rodas.

Filipe Costa
Escrito por
Filipe Costa
Estagiário
Ligados às Máquinas / APCC
Tiago Cerveira | |
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A música como instrumento de transformação social; como acto de superação, como meio de inclusão. Música, enfim, como veículo para a participação activa da vida em sociedade. São estes os eixos que o musicoterapeuta Paulo Jacob procura ligar com as suas iniciativas. “A participação é um conceito que, à partida, é um direito consagrado a todos os seres humanos. É um direito universal”, defende, em entrevista à Time Out. No entanto, “as pessoas com alterações neuromotoras mais graves” são também “aquelas que têm menos acesso às actividades, e menos àquilo que a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde [CIF] denomina de participação”. Ora, foi esta falha que o profissional procurou suprir com o projecto Ligados às Máquinas, uma "orquestra de samples" disparados por um ensemble de músicos em cadeiras de rodas.

O grupo foi fundado há 12 anos, no seio da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC), mas as primeiras sementes já estavam plantadas desde 2007. Nesse ano, Jacob integrava o Serviço Educativo da Casa da Música do Porto, onde se deparou com “gente genial que fazia esta ponta entre a tecnologia e a deficiência”. “Comecei a reflectir um bocadinho sobre qual poderia ser o papel da tecnologia”, recorda sobre a aventura que chegaria ao fim uns anos depois, em 2010. Restava saber, então, de que forma é que a tecnologia poderia “dar resposta a estas pessoas, fazendo-as participar activamente num processo criativo”. 

“Na altura criei uma actividade só mesmo para colmatar essa questão da falta de respostas e de uma actividade que fosse realmente revigorante para as pessoas e que pudesse, obviamente, melhorar a sua qualidade de vida”, diz. “Comecei a utilizar computadores, software, hardware, a adaptar aqui e ali, e criámos [juntamente com a APCC] uma resposta especializada no âmbito da tecnologia e da música”. A intenção passava por “despertar” pessoas com dificuldades neuromotoras para a participação num contexto musical. “Era algo que lhes estava um bocadinho vedado, e a tecnologia veio abrir um bocadinho o seu âmbito de participação”, aponta.

Uma iniciativa com “rodas para andar”

Em 2012, Paulo Jacob – que coordena também a formação dos 5ª Punkada – descobriu uma placa de hardware que permite converter objectos condutores de corrente eléctrica (comandos, por exemplo) em controladores de som. Foi como uma epifania. “Olhei para aquilo e pensei: uau, se calhar poderia fazer uma orquestra em cadeiras de rodas com pessoal a disparar samples”. Seguiram-se ensaios e concertos em associações congéneres à APCC, que depois se expandiram para salas de teatro e alguns festivais. Em palco, tal como nos ensaios, Jacob funciona como “uma espécie de facilitador visual”, guiando os “caminhos” através de gestos e do contacto ocular. “A minha função é envolvê-los a participar cada vez mais, a ter cada vez mais opiniões, a lançar cada vez mais sugestões”, diz, classificando o processo como “muito democrático”. “As pessoas ouvem os sons e escolhem aqueles com que mais se identificam.”

Hardware Make Makey
Tiago Cerveira

O grande desafio, confessa, foi reunir um grupo estanque de elementos. “Era muito difícil conseguirmos concentrar toda a gente no mesmo local e à mesma hora”, justifica. “Algumas delas têm outras actividades, que por sua vez são muito significativas para elas”. Ainda assim, Jacob sabia que a iniciativa tinha “rodas para andar”. Depois de algumas saídas, o grupo fixou-se no núcleo duro que hoje compõe a formação dos Ligados às Máquinas, constituído por Andreia Matos, Dora Martins, Fátima Pinho, Hélia Maia, Jorge Arromba, José Morgado, Luís Capela, Mariana Brás, Pedro Falcão e Sérgio Felício.

Jacob começou por desafiar os músicos a trazer sons de casa, desde trechos retirados de anúncios publicitários até às muitas músicas que compõem o espectro musical. De um processo de recolha de sete meses foram retiradas cerca de 400 amostras. “A ideia foi pegar um bocadinho no conceito de melting pot e transpô-lo para este universo”, explica. “Não é, per se, uma actividade terapêutica. É uma actividade musical coordenada com uma consciência terapêutica da minha parte”, diz ainda o musicoterapeuta. “A ideia é mesmo essa: a partir das idiossincrasias e das diferenças de cada um, promover estas pessoas como agentes culturais”. 

Uma fascinante orquestra de samples  

Há cerca de dois anos, começou a pensar-se na possibilidade de o grupo lançar um disco de originais. Mas havia uma limitação. “Estávamos a utilizar propriedade intelectual de outrem, sem a devida autorização”, recorda Paulo Jacob. “Isso podia trazer-nos problemas”. Com a ajuda da Omnichord Records, uma editora que soube “puxar pelo lado da capacidade e menos pelo da incapacidade”, surgiu a ideia de desafiar figuras dos mais variados quadrantes da música nacional, entre cantores, instrumentistas e produtores, a fornecer a matéria sonora necessária para a elaboração de um disco. Ana Deus, Bruno Pernadas, First Breath After Coma, Moullinex, Orquestra e Coro da Gulbenkian, Rita Redshoes, Salvador Sobral e Selma Uamusse foram alguns dos mais de 30 artistas que cederam as amostras que agora compõem os temas de Amor Dimensional, a editar a 6 de Dezembro, pela Omnichord.

A proposta inicial previa a composição de cinco temas para serem apresentados no Festival Nascentes, na aldeia das Fontes, em Leiria. A esses temas foram acrescentados outros quatro que desenham, através de títulos sugestivos e com recurso a uma multiplicidade de linguagens sonoras diversas, o dia-a-dia de cada um dos seus intervenientes, “do acordar” ao “merecido descanso”, embalado pela “possibilidade de sonhar”. O título do disco explica-se pelo “afecto que une” este grupo em torno da música, bem como o sentimento de pertença que a iniciativa propiciou. “Foi um sentimento que ficou corroborado com a atitude [dos músicos]”, diz Paulo Jacob. “Nem eles próprios estavam à espera de que [o resultado] fosse tão avassalador”.

Ligados às Máquinas
Vera MarmeloLigados às Máquinas no Festival Nascentes'23

Para já, ainda não há apresentações à vista, mas o assunto já está a ser tratado, garante o musicoterapeuta. “É tudo um admirável mundo novo quando falamos de espectáculos”, diz. Estamos a falar de um grupo que requer uma equipa de 20 pessoas a acompanhá-los, e temos dois elementos que necessitam de máquinas de oxigénio, portanto temos de ter esse cuidado”. Para além das exigências operacionais, há também o peso que recai sobre os próprios membros do grupo. “[É um processo que] exige bastante em termos de concentração. Há ali um factor de atenção elevado aos píncaros, quer em situação de ensaio, quer em situação de concerto”.

Além de raros, os espectáculos do grupo oferecem uma oportunidade única para reverter papéis e questionar ideias pré-concebidas. “Normalmente uma pessoa em cadeira de rodas olha para os demais de baixo para cima, mas quando está em cima de um palco, essa situação inverte-se”, nota o musicoterapeuta. “Essa acaba por ser também uma espécie de missão nossa: acreditarmos que a arte pode abrir canais de comunicação com o senso comum e ver se conseguimos alterar um bocadinho essa percepção que a sociedade tem sobre pessoas com deficiência”.

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