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A problemática não é nova nem pacífica. Se em países anglófonos como os EUA a discussão já vai avançada e a comunidade não-binária cada vez se sente mais representada, em Portugal, além de não reunir consenso, gera resistência. A língua portuguesa – que, ao contrário da inglesa, tem marcas de género em quase todas as palavras – parece ser a grande culpada. Ao não reconhecer identidades para além do binário masculino ou feminino, põe em causa a existência de pessoas que não se identificam inteiramente nem como homem nem como mulher. A solução encontra-se, defendem activistas como a rede ex aequo (associação portuguesa de jovens LGBTI e apoiantes), numa linguagem inclusiva e, acima de tudo, neutra. Resta saber se é praticável e como a normalizar. A literatura, enquanto potencial ferramenta transformadora, poderá ter um papel importante a desempenhar. Mas estará o mercado nacional pronto para isso?
“Quando se fala de não-binarismo, parece haver necessidade de manter segredo, como se fosse uma coisa feia que não se pode contar a ninguém”, lamenta Elga Fontes, tradutora de Lendários, de Tracy Deonn. Publicado em Outubro de 2022 pela Desrotina, chancela do grupo Infinito Particular, foi lançado como o único livro em Portugal a recorrer – até então – ao Sistema Elu, uma proposta para a inclusão de um género gramatical neutro no português. “Foi muito difícil encontrar informação acerca da existência de outras obras editadas em Portugal [com linguagem neutra]. Para mim foi imediato: tinha de usar o Sistema Elu. Já conhecia – e reforcei esse conhecimento para o aplicar de forma correcta –, porque gosto de estar informada não só como tradutora, mas como ser humano, capaz de respeitar as escolhas das outras pessoas relativamente à forma como querem ser tratadas e como se querem apresentar ao mundo.”
O Sistema Elu surgiu em torno de 2011 como um conjunto de soluções gramaticais pensadas por activistas do Brasil. Ophelia Cassiano, activista trans e queer, compilou-as entretanto num único guia. “No Brasil, esta discussão tem mais de 40 anos. Mas, por o português ser um idioma complexo, várias lacunas existiam”, esclarece por e-mail, em que se identifica com os pronomes Ela/Elu. “Entre 2016 e 2017, decidi ir sozinha atrás de todas as propostas para tornar a linguagem funcional e praticável, e para que, futuramente, fosse oficializada.” Estávamos em 2019 quando, por fim, publicou o seu Guia para Linguagem Neutra (PT-BR), que inspirou uma adaptação para a variante do português europeu, assinada pelo portal dezanove e já usada como padrão pela rede ex aequo. “O artigo do dezanove foi uma das minhas referências. É bastante completo e, ao mesmo tempo, sucinto”, assegura Elga, que destaca a acessibilidade destes materiais.
Além do uso dos neopronomes “elu”, “delu” e “aquelu”, o Sistema Elu – válido apenas para seres humanos, não afectando o tratamento de outros seres vivos e objectos, nem a sua concordância – propõe que, no final de palavras com flexão de género, seja aplicado o morfema “e”. “Assim, palavras como ‘simpático’ [ou simpática] e ‘nervoso’ [ou nervosa], ficam ‘simpátique’ e ‘nervose’”, lê-se em nota da tradutora. “Demos total liberdade [à Elga] para escolher a opção que melhor representasse a obra e que funcionasse bem em português”, revela a responsável de comunicação do grupo Infinito Particular. Ana Gaspar Pinto não nega que o Sistema Elu “não está estandardizado ou sequer acordado gramaticalmente, o que pode suscitar dúvidas nos leitores”, mas justifica a decisão tomada com o que crê ser “uma responsabilidade cívica”.
Margarita Correia, professora de Lexicografia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, considera a discussão “benéfica para a produção de conhecimento e a compreensão do que nos rodeia”, mas apresenta-se mais conservadora da gramática normativa, defendendo até que a mudança poderá prejudicar a compreensão oral e escrita. “As soluções que se prendem com escolha de palavras ou expressões [mais inclusivas], ou com padrões discursivos poderão instalar-se. Quanto às soluções gramaticais do tipo ‘tod@s’ [entretanto considerada capacitista] e ‘todes’, penso que estão condenadas ao fracasso. Para mim não faz sentido e não acredito que perdurem no tempo”, remata.
Em contraste, o linguista João de Matos não é tão peremptório. “Jamais diria que uma língua natural deve ser, ou fazer, isto ou aquilo. Não se trata de um imperativo ético, mas de uma fatalidade sociológica. As línguas naturais evoluem em conformidade com o desenvolvimento das suas comunidades de fala e à revelia das opiniões de qualquer pessoa que se pretenda imiscuir na forma como os falantes utilizam as suas línguas maternas”, afirma o doutorando e investigador do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa. “A partir do momento em que há pessoas que utilizam o Sistema Elu para falar sobre si mesmas, parece-me importante que as restantes pessoas conheçam o sistema, quanto mais não seja para poderem falar com – e sobre – as primeiras.” Para João de Matos, é “um exercício de respeito simples”, mas só se irá popularizar à medida que as pessoas não-binárias conquistarem espaço na esfera pública.
Uma mensagem de inclusão
O que está em causa é, no fundo, a visibilidade – ou a falta dela. “Quantos livros conhecemos com tradução para português ou mesmo escritos em português que tenham representação não-binária?”, questiona Elga Fontes, dando eco a vozes como a de Noah Leão, presidente da rede ex aequo. “Ao longo da evolução da humanidade, foram surgindo novas coisas e nós arranjámos formas de as nomear. As pessoas não-binárias existem há imenso tempo e a língua ainda não as reconhece”, diz Leão. “Muitas pessoas da minha geração começaram a falar e a ler em inglês mais cedo porque era em inglês que encontrávamos histórias representativas das nossas vivências. Ter representação literária reconhece e normaliza a existência de pessoas não-binárias e também contribui para que quem não faz parte da comunidade tenha oportunidade de se relacionar.” Mas em Portugal, no que a livros com personagens não-binárias diz respeito, ainda pouco se escreve ou traduz.
“Temos um livro escrito por uma pessoa não-binária [Viúva de Ferro, de Xiran Jay Zhao], mas [se alguma vez editarmos livros com representação] realmente não sei como vamos resolver esse imbróglio. O inglês não tem esse problema, mas para línguas como a nossa, que vêm do latim, é uma grande confusão, porque obriga a uma mutilação do português”, diz Luís Corte Real, fundador da Saída de Emergência, que confessa não concordar particularmente com o uso do Sistema Elu. Não é caso único. Apesar da publicação de O Desassossego da Noite, de Marieke Lucas Rijneveld, a primeira pessoa não-binária a ganhar um Man Booker International Prize, e de prevista a edição de mais obras com representação não-binária, como As Mulheres Impiedosas, de Namina Forma, o grupo editorial LeYa também “enquadra a sua acção pelas regras gramaticais e lexicais que actualmente são usadas”, optando apenas, sempre que pertinente, pela não classificação dos sujeitos quanto ao género, com a adjectivação a seguir a mesma linha inclusiva.
Já a Penguin, por exemplo, ainda não tem livros com personagens não-binárias, mas está a trabalhar na possibilidade e tem utilizado comunicação não-binária no âmbito do Bold Reads, o seu mais recente projecto de curadoria para jovens e jovens adultos. “Ao utilizarmos uma linguagem neutra, estamos a passar uma mensagem de inclusão de pessoas não-binárias e a ajudar à normalização deste tipo de linguagem, que esperamos que se torne também língua”, reforça Noah. “Há toda uma evolução que é preciso ser feita e nem sempre tem de ser a lei a dar o primeiro passo, pode ser a sociedade civil e as indústrias, porque eventualmente quero crer que o resto acompanhará.” Elga Fontes não poderia concordar mais: “Os livros são portas para outras formas de pensar e viver. Quando uma pessoa lê um livro, esse livro pode mudar a sua vida. Quando muitas pessoas lêem o mesmo livro, esse livro pode mudar o mundo.”
Artigo originalmente publicado na edição de Primavera 2023 da revista trimestral Time Out Lisboa.
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