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Lisboa está a reabilitar o espaço público, mas “há muitas oportunidades perdidas”

Estamos a preparar a cidade para o futuro? Nas novas praças, aposta-se em árvores, bicicletas e peões, mas também em muito betão e pouca participação cidadã, dizem os especialistas.

Rute Barbedo
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Rute Barbedo
Jornalista
Parada do Alto de São João
Francisco Romão PereiraParada do Alto de São João
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 670 — Verão de 2024.

Quando o paisagista e filho de agricultores chinês, Kongjian Yu, veio a Portugal participar num congresso, o jornal Público falou-lhe do investimento de 250 milhões de euros em túneis de drenagem em Lisboa. “A longo prazo é estúpido pensar que a tecnologia vai resolver o problema”, reagiu o arquitecto que está a transformar muitas cidades da China em lugares-esponja, numa resposta às alterações climáticas. 

Ter medo da água, como tivemos medo da terra durante décadas, aprendendo a cimentar e a estilizar tudo, dos logradouros aos parques infantis, é, para Yu, um erro crasso em países como Portugal, de clima mediterrânico. Aqui, as alterações climáticas vão sentir-se em chuvas intensas, mas também em temperaturas altas e longos períodos de seca. Os 50º C em ondas de calor não são previsão para as gerações seguintes, mas para estas. Como na longínqua China, por isso, cada vez mais são as cidades europeias a apostar em modelos naturais, permeáveis, anti-betão e anti-motor, para que se possa fazer uso da água durante o tempo seco e arrefecer a cidade, trazendo, ao mesmo tempo, biodiversidade e melhorando a qualidade do ar.

Na Parada do Alto de São João, Penha de França, a obra do programa Uma Praça em Cada Bairro (Fernando Medina) está prestes a ser inaugurada e o cenário é de betão. “Parece-me demasiado impermeável, a começar pelo pavimento. Também há muros de betão e lancis de pedra, chapas de aço. No estacionamento, os cubos de granito são relativamente permeáveis, mas a cor escura vai aquecer muito. E a área de arbustos é exígua.” A análise é de António Lopes, investigador em Climatologia Urbana e Local do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT), que diz que o revestimento dos solos do espaço público é um tema cada vez mais central nas discussões internacionais e que o consenso é este: naturalizar. 

Parada do Alto de São João
Francisco Romão PereiraParada do Alto de São João

Chamando a atenção para o impacto do aumento da temperatura nos índices de mortalidade, António Lopes lembra que “há 50 anos que a temperatura está a aumentar, por isso, já podíamos estar a preparar-nos mais e melhor”. “As guidelines internacionais são para que se criem espaços renaturalizados, e naturalizar não é pôr só árvores. Tem de se pensar nas várias estruturas verdes e nas suas associações”, indica.

Ao mesmo tempo, releva o investigador, “toda aquela área poderia ser mais pedonal, fechando-se uma ou outra rua ao trânsito, por exemplo”, naturalizando-se também a forma como nos deslocamos na cidade. Como corrobora Ana Beja Costa, investigadora no projecto MetroPublicNet, da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, o desenho da novaParada tem muito espaço dedicado ao estacionamento”. “É uma necessidade, mas parece mais pensado para quem vai ao cemitério do que para os moradores”, analisa. 

O projecto, muito elogiado por Medina, o anterior presidente da Câmara, ainda assim, veio qualificar aquilo que era um lugar esquecido, na visão dos residentes. A nova praça fez desaparecer algumas árvores maduras (alegadamente, por razões fitossanitárias), plantando-se novas, com um saldo maior do número de exemplares. Ganhou-se em área pedonal, com a reorganização do estacionamento (não perder lugares era uma reivindicação dos moradores, que, a nível público, são apenas servidos pela rede de autocarros). Surgem, ainda, um parque infantil e um quiosque, equipamentos de exercício físico e uma área de jogos de água. 

Jardim Zoológico, ou a praça branca

Do outro lado da cidade, em Sete Rios, a Praça Marechal Humberto Delgado surgiu renovada este Verão. A obra (Uma Praça em Cada Bairro) implicou a retirada dos autocarros da frente do Jardim Zoológico para uma faixa exclusiva na estrada principal, gerando-se um espaço maior e mais seguro para os peões.

Praça General Humberto Delgado
Francisco Romão PereiraPraça General Humberto Delgado

Foi criada uma ciclovia bidireccional, junto a uma língua de vegetação rasteira e uma linha de árvores novas. Em cada uma das áreas verdes nas laterais, criaram-se pequenas bacias para captar e escoar as águas neste lugar cujo nome diz tudo sobre o que se passa no subsolo: Sete Rios. Na zona em direcção à Estrada de Benfica, há uma área reservada a jogos de água e mantêm-se a zona de recreio e o quiosque, junto às árvores de grande porte que já existiam. O grande centro, no entanto, é uma mancha de pavimento claro e árido, que aquece e encandeia.

“Quase toda a frente do Jardim Zoológico fica impermeabilizada, e as pessoas não precisam daquele espaço todo para circular. Árvores e estruturas verdes são fundamentais, até para manter uma certa biodiversidade do solo, como se fez na Praça de Espanha, com aqueles pastos muito bem conseguidos”, detalha António Lopes.

Largo de São Sebastião da Pedreira
Francisco Romão PereiraLargo de São Sebastião da Pedreira

A dois quilómetros, no Largo de São Sebastião da Pedreira (mais Uma Praça em Cada Bairro), há 11 novas árvores, passeios mais largos e zonas 30+bici na envolvente, um quiosque e piso de calçada portuguesa. “Está melhor. Antes eram só carros aqui parados”, avalia Maria Odete, residente nas Avenidas Novas, deixando, ainda assim, uma ressalva: “A calçada é que daqui a uns tempos vai estar toda levantada.” Mas a calçada, analisa António Lopes, “talvez seja um bocadinho mais eficiente quanto à infiltração das águas”.

“Está bonito”, mas são “oportunidades perdidas”

Renovadas, as praças vão permitir um melhor uso do espaço público? “Há uma redução do espaço dedicado aos carros, mais ciclovias e faixas de bus... Tudo isso me parece bastante aceitável”, nota António Lopes. “Nos últimos 25 anos, a evolução global é positiva”, sobretudo no protagonismo dado ao peão e no foco na plantação de árvores, sublinha Maria Matos Silva, professora de arquitectura paisagista no Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa. Mas, num cenário de urgência climática e de crescimento das populações urbanas as previsões apontam para que 70% da população mundial viva em cidades até 2050 , “podia-se fazer mais”, complementa a paisagista Ana Beja Costa. Em suma, “há muitas oportunidades perdidas”. “Podia haver muito mais nature based solutions. Mas continua-se a fazer uma drenagem geral por via da engenharia.” 

Para Carlos Moedas, a requalificação do Largo de São Sebastião "foi uma obra muito importante”. “Olhem para isto, como está bonito", elogiou o presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), na inauguração, a 14 de Junho. Mas a ideia, defende Duarte Ramalho Fontes, do Mass Lab, atelier que assina o projecto de espaço público e habitação junto à Basílica da Estrela (que deverá estar pronto em 2026), “não é criar algo bonito”, mas pensar “na qualidade dos materiais, na sustentabilidade, eficácia, e no uso que as pessoas vão dar ao espaço”. “O design não tem de ser intuitivo, mas quase científico”, argumenta.

Rua de São Ciro
DR/MassLabRua de São Ciro

Sobre o projecto na Estrela, Duarte Fontes destaca três aspectos: o uso da pedra, matéria natural, porosa, local e durável, a reutilização dos materiais resultantes da demolição do antigo Hospital Militar (onde vão nascer a praça e a habitação) e a criação de um “rain garden” para responder à topografia. Com a pendente acentuada da zona, “se fosse tudo pavimentado, chegaria uma cascata à Infante Santo” em dias de muita chuva. Em vez disso, optou-se por um sistema natural que retarda o caudal da água e permite a sua absorção e filtragem, útil para arrefecer a superfície e para reutilizar a água de forma lúdica, num fontanário.

Temos de “aprender com a natureza e mimetizá-la”, defende Duarte Fontes. Mas ao fazê-lo, complementa António Lopes, é preciso “informar a população”. “Às vezes as pessoas não percebem bem estas opções pelos prados e áreas-esponja. Quando se implementou o corredor verde entre Monsanto e o Parque Eduardo VII, achavam que estava tudo mal tratado, cheio de ervas. O que queriam ali era relva. Mas é preciso dizer que há um plano paisagístico por trás.”

Se tudo isto se sabe, por que subsistem modelos relativamente conservadores? “Muitas vezes, se o dono da obra é a Câmara, tenta agradar às pessoas, pensa nos votos. E as coisas vão-se mantendo assim, sem grandes revoluções”, diagnostica António Lopes. 

Envolver as pessoas

A construção do espaço público não é só uma questão climática. Nas praças de todos os séculos, começaram revoluções, criaram-se amantes e festas, leram-se poemas, fez-se política. Em cidades como Berlim, Barcelona ou Paris, o espaço público e a intervenção dos cidadãos na sua construção ganham peso. Em Lisboa, pelo contrário, mantém-se uma “filosofia de construir cidade muito dos anos 80 e 90”, critica o arquitecto Tiago Mota Saraiva, da cooperativa Trabalhar com os 99%, que em 20 anos de actividade contabiliza poucas oportunidades de colaboração com a CML. E “não depende necessariamente do executivo”, diz à Time Out.

O arquitecto enumera quatro erros em repetição: não se aposta nos processos participados pela população; “continua-se a impermeabilizar tudo”; a articulação com associações e outras entidades que tragam inovação aos planos para a cidade é escassa; e “arrisca-se muito pouco”, replicando-se modelos como o tríptico “espaço pedonal-parque infantil-quiosque”, quando há muitas outras formas de interagir com a cidade. 

Em repeat estão também as apresentações de projectos em fases muito avançadas. “Isso não são processos participados”, garante o profissional, olhando em concreto para o que aconteceu com a Praça das Novas Nações, onde os cidadãos viram cair exigências anotadas ao longo de anos de discussão. Para Tiago Mota Saraiva, embora haja “um esforço” da parte do poder público, “não se está a construir a cidade contemporânea”. 

Praça das Novas Nações
Francisco Romão PereiraPraça das Novas Nações

A 24 de Maio, a Junta de Freguesia de Arroios comunicou: “A Praça das Novas Nações [nos Anjos], reconhecida como um ponto de encontro vital para a nossa comunidade escolar, está prestes a ser completamente transformada.” No escritório da cooperativa de arquitectura Trabalhar com os 99%, que desde 2012 foi desenhando um plano para aquele espaço em cooperação com a comunidade (moradores, comerciantes, alunos e professores da escola em frente à praça, a Sampaio Garrido), a notícia foi recebida com completa surpresa. 

Depois de anos a organizar assembleias e a apresentar soluções, sempre em comunicação com a CML e com a Junta, um projecto diferente de praça foi apresentado no final de Maio pelo poder público, esquecendo algumas das necessidades manifestadas pelos cidadãos, de acordo com o colectivo de arquitectos. Apenas se conhecem algumas imagens (uma é do projecto da Trabalhar com os 99%, sem que a cooperativa tivesse sido consultada ou mencionada, as outras do Departamento do Espaço Público da Câmara, de acordo com a informação dada pela autarquia à agência Lusa), mas “as pessoas queriam a paragem na praça e já lá não está”, e foi eliminado um percurso diagonal, com corrimão, para ajudar os mais velhos a atravessar o espaço, exemplifica Tiago Saraiva, alegando que “as pessoas já não se vão rever” naquela praça. 

“A máquina está muito disponível para trabalhar contra” e parece achar “perigoso que as pessoas tenham poder decisão”, critica o arquitecto. Por outro lado, vê “aqui uma certa dose de chico-espertismo”, já que “apresentar projectos de arquitectura à população não é um processo participado, é fazer as coisas numa fase muito adiantada”. 

Ao que tudo indica, o principal problema do lugar ​​ o facto de a escola estar separada da praça por uma rua dedicada ao trânsito automóvel —, ainda assim, será resolvido até ao início de 2025, altura em que a Junta prevê concluir a obra. É uma situação antiga e, na visão de Tiago Mota Saraiva, “um crime”. “É de uma cidade que não se preocupa com as pessoas”, avalia o profissional. 

Praças feitas, fica uma pergunta por fazer, não sobre Sete Rios ou o Alto de São João, mas que paira como uma nuvem sobre os lugares expectantes da cidade e que, na perspectiva de Duarte Fontes, deve ser a primeira de todas: “Precisamos realmente de construir? É uma pergunta que nem sempre se coloca, mas, às vezes, a melhor solução é não fazer nada.”

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