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Esta é a primeira retrospectiva de Luís Pavão (Lisboa, 1954), o fotógrafo obcecado em congelar a História, tanto através dos frames que recolhe desde os 17 anos nas esquinas e casas de Lisboa, como da conservação e preservação de colecções como a de Carlos Relvas ou da Fundação Calouste Gulbenkian. Guarda tudo em gavetas, estantes, blocos, dossiers e sabe que o que está a documentar tem potencial para desaparecer. Não é uma fixação pelo tempo contado, mas a morte das coisas impõe urgências. No escritório da LUPA, empresa de fotografia e conservação que fundou nos anos 80, há toda uma orquestra para não deixar o presente esfumar-se, dos químicos da câmara escura aos digitalizadores. Imerso na película, e antecipando a exposição "Lisboa Frágil", Pavão leva a Time Out numa viagem até às provas de contacto das tabernas (onde chegou a levar pancada), dos peitos apertados nas matinées dançantes, das ovelhas junto ao estádio de Alvalade. O que vai desaparecer a seguir? Não diz. Mas leva ao Museu de Lisboa – Pavilhão Pimenta, a 1 de Fevereiro, 30 imagens da Lisboa entre 1971 e 2012. Pode ser que daqui adivinhemos o futuro.
Porquê fazer uma retrospectiva agora, em 2024? Há algum ciclo que se fecha?
Já tinha esta ideia há algum tempo. Muitas vezes, visito o meu arquivo, que começou em 1971, ainda que de forma bastante amadorística. E esta linha de trabalho, das fotografias da Lisboa popular, viva, foi uma coisa que sempre desenvolvi, em vários pólos. Comecei por fotografar as tabernas, depois, Lisboa à noite, as colectividades, os bares, enfim… Houve uma continuidade ao longo destes 40 anos [até 2010/2012], porque ando sempre por Lisboa, com a câmara.
É uma pessoa da rua.
Ando sempre à coca, sim. E tinha vontade de fazer um projecto que pegasse nisto tudo e pusesse ou num livro ou numa exposição. Bom, vou fazer os dois [o livro é publicado em Fevereiro, dias após a inauguração da exposição, pela Sistema Solar]. Acho que é uma altura boa. Sinto-me com energia e são poucas as pessoas que conheceram esta Lisboa. Para as gerações mais novas, como os meus filhos, isto é uma descoberta. Este mundo foi ao fundo, desapareceu. Lisboa já é outra coisa.
Como foi revisitar essa Lisboa?
Na verdade, foi uma descoberta também para mim. As fotografias de que mais gosto hoje não são as de que mais gostei na altura. Como a cidade se modificou, há coisas que deixaram de ser banais para passarem a ser raridades. Mas, na altura, eu procurava sempre acontecimentos, tinha uma visão um pouco jornalística, e isso já não me interessa absolutamente nada. Interessam-me imagens que definam ambientes, posturas, atitudes, como aquelas fotografias das peixeiras no Mercado da Ribeira. Gosto de coisas mais estáticas, menos dinâmicas.
Ainda não tinha 20 anos quando começou a fotografar…
A fotografia mais antiga do livro é de 1971, tinha 17 anos.
Mas já tinha a preocupação de guardar, de arquivar?
Nunca deitei nada fora. Guardava sempre os negativos. Hoje apaga-se: “Já não tenho espaço, vou apagar.” Naquela altura, havia sempre espaço, então, o arquivo foi-se construindo. Quando apareceram os computadores, comecei a fazer uma base de dados descritiva. E mais ou menos em 2000, comecei a digitalizar.
Paralelamente à actividade como fotógrafo, também tem muito trabalho ligado à preservação, para câmaras municipais, instituições privadas… Conservou o espólio de Carlos Relvas…
Sim, as duas coisas juntam-se, sobretudo aqui [na Lupa], que estamos focados na preservação. As duas coisas ligam-se. E depois também sou funcionário no Arquivo Municipal. Tudo isto estimula o gosto.
Mas a minha pergunta era: estas duas formas que encontrou de preservar a memória, seja pelo acto de fotografar, seja pela conservação de imagens registadas por outros, resumem o seu objectivo enquanto fotógrafo? Olhando para “Lisboa Frágil”, o importante é não deixar uma certa Lisboa desaparecer?
Eu sempre tive essa preocupação. Desde o princípio, quando comecei a fotografar as tabernas, pensei: “Isto vai desaparecer, um dia.” E em 1977/78, as tabernas começaram a ser encerradas, porque apareciam balcões de bancos, restaurantes… O que fica são as fotografias. Isso é que me fez ir para os Estados Unidos estudar conservação de fotografia, não tanto com a perspectiva do património fotográfico português, mas do meu património fotográfico [risos]. Pensei: “Eu quero guardar isto e quero saber como se faz. Se puder utilizar mais tarde, vai-se tornar precioso, cada vez mais.”
Como o jogo da laranjinha… Que jogo era esse?
Era um jogo de taberna, jogado por homens, enquanto fumavam, discutiam e bebiam vinho, em equipas de três contra três. O campo era um rectângulo cavado de terra batida molhada, as bolas de madeira, muito grandes… Era uma espécie de versão portuguesa da petanca [jogo popular em França], só que este é jogado como desporto, ao ar livre, e a laranjinha era um jogo de taberna e de vício, com palavrões e vinho. E era muito popular em Lisboa. O meu pai dizia-me que havia tabernas que chegavam a ter dois campos de laranjinha. Eu fotografei-os em 1986, em colectividades, que tinham nomes deliciosos, como o Grémio de Instrução Liberal de Campo de Ourique ou o Centro Escolar Republicano Almirante Reis.
Foi tendo noção, ao longo dos anos, de que estava a fotografar coisas condenadas a desaparecer?
A cidade está sempre em mutação. O que está há muitos anos num sítio, de um dia para o outro, desaparece. Nos últimos anos, sobretudo depois da Expo’98, foi arrasador. E o turismo foi demolidor. Nos últimos dez anos, o que desapareceu de Lisboa foi impressionante. O que é Alfama hoje? A Eurodisney portuguesa, uma coisa para mostrar ao turista. Os habitantes de Alfama estão no Algueirão e no Cacém, e os turistas vão só ver os comerciantes que lhes tentam vender qualquer coisa.
O que anda a fotografar agora?
Tenho necessidade de andar sempre a explorar. Esta zona [do Martim Moniz ao Intendente], por exemplo, que era muito de velhinhos e de cãezinhos, mudou muito. Os imigrantes trouxeram uma vida completamente nova e uma dinâmica impressionante para cá, também porque vivem muito a rua...
Que mudanças sente que a cidade está a viver agora? Consegue classificar?
São dolorosas. Mas a cidade tem de se renovar… Lisboa, há 20 anos, era uma cidade decadente. É claro que, com a renovação, houve muita coisa que desapareceu. E a revolução tecnológica, os computadores e os telemóveis, mataram imensos negócios. Havia oficinas gráficas que eram coisas lindas e que cheguei a fotografar… Isso desapareceu tudo, os cartõezinhos, os blocos, coisas que se faziam e que alimentavam toda uma indústria. Também desapareceram muitos restaurantes familiares, do bitoque, da alheira, do bacalhau, para darem lugar a kebabs, ramens, comida chinesa, restaurantes de curta duração, que vivem de modas de dois anos.
E isso faz de Lisboa menos apetecível ao olho?
Não sei. Se estes kebabs começarem a desaparecer se calhar vou começar a achá-los mais interessantes [risos].
Vai começar a registar os kebabs.
[risos]
Só se interessa pelo que vai desaparecer?
Não. Mas sem dúvida que isso é um estímulo.
Museu de Lisboa – Palácio Pimenta (Campo Grande). 1 Fev-31 Mar. Ter-Dom. 10.00-18.00. 3€ (Grátis no dia da inauguração)
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