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Nasceu na cidade de Lisboa e cresceu mesmo à beirinha do Tejo. Diz que começou a escrever poemas mal saiu da primária e que aprendeu a inventar histórias para entreter o irmão mais novo, que era muito endiabrado. Até hoje, mesmo no Inverno da vida, contar ficções é o que Luísa faz melhor. Só Luísa, porque a premiada Luísa Ducla Soares, um dos grandes nomes da literatura portuguesa para crianças e jovens, acompanha-nos há tantas gerações que a sentimos assim. Ao telefone, a voz rouca, mas doce, confidencia-nos com entusiasmo: “Agora, vou contar-lhe, até estou a escrever quatro livros ao mesmo tempo.”
Há três anos, Luísa completou 50 anos de carreira. Por causa da pandemia, a exposição comemorativa na Biblioteca Nacional não chegou a ser inaugurada e, entretanto, apesar do pior já ter passado, é em frente ao computador que continua a falar com os miúdos para os quais nunca parou de escrever. “Desde manhã até à noite. Sou viciada em trabalhar, é verdade, mas estes livros como o Zoodário [lançado este mês de Setembro pela Porto Editora] são livros que me divertem”, diz. “Já fiz tantos alfabetos em verso que, quando me pediram mais um, não fiquei particularmente entusiasmada. Depois vi os desenhos [da Elli Galego] e já não consegui escapar.”
Os livros para os miúdos vivem de casamentos felizes entre texto e ilustração, mas um bom livro, garante-nos Luísa, não se esgota na leitura. Abre-nos horizontes, faz-nos pensar, leva-nos das páginas para outros sítios. É por isso que, apesar de não ser contra as televisões nem os telemóveis ou os computadores – “tudo isso são maravilhas da tecnologia, que devemos aproveitar ao máximo” –, às vezes receia que, por causa do estilo de vida moderno, nos estejamos a esquecer da magia do analógico. “É que os miúdos, que são grandes observadores, às vezes muito mais que os adultos, encontram justamente nos livros possibilidades de desenvolver o seu interesse e a sua fantasia.”
A imaginação é uma coisa séria
Luísa já não é uma miúda, mas o seu lado criativo está longe de enferrujar. É um feito e pêras. Nem todos os crescidos se mantêm assim. O segredo – a autora acredita piamente nisso – é precisamente o gosto pelas letras e a língua, “também enquanto fonema”, que deve ser cultivado desde muito cedo. Na escola, por exemplo. “O primeiro [dia] de todos é aquele que nunca esquecemos”, diz-nos, a propósito de O meu primeiro de escola. Recém-editado pela Texto Editores, o livro evoca essa memória que é, ao mesmo tempo, intimamente pessoal e colectiva, como um misto de ansiedade e entusiasmo, que se revela também muito feliz.
“O meu não foi assim tão agradável”, confessa. “Fui para um colégio inglês, para a pré-primária, e não sabia nada de inglês nem conhecia ninguém. As professoras eram muito diferentes dos professores de hoje, porque eram distantes e rígidas, e lembro-me de ter fugido para o sítio dos casacos para me esconder a chorar. Nunca contei isto a ninguém, veja lá. Mas claro que essa minha vivência não tem nada a ver com a actualidade. Há uns anos não se tinham os mesmos cuidados. Hoje há um certo ambiente de descontracção, até de carinho, de informalidade, de jogo, que antes não havia.” E que faz toda a diferença, Luísa não tem dúvidas, porque os miúdos só vão querer ir à escola – como só vão querer ler – se criarem uma relação de afecto com a actividade.
Em O meu primeiro dia de escola, o protagonista começa por sonhar como seria ser uma gaivota, “voar livre pelo ar,/ ouvir as lições do vento/ sem nunca ter de estudar”. Só o confronto com a realidade e uma professora simpática, que acredita que ser feliz e ter amigos faz falta para crescer, é que o João equaciona que, talvez, quem sabe, venha a gostar. “Estar em comunidade é fundamental. Com os livros é igual. A leitura não tem de ser e, no início, nem é aconselhável que seja uma actividade solitária. É para fazer em família e leva quase sempre a conversas intergeracionais muito interessantes”, desafia. “Para mim, aliás, escrever é como ter uma conversa com os outros. É preciso atirar pedras para o charco do dia-a-dia que é uma chatice.”
As conversas a sério, contudo, já só se fazem, na sua maioria, à distância. Ter 84 anos também tem as suas desvantagens, brinca Luísa. “Depois de me reformar passei a não fazer mais nada se não andar como uma maluca aí pelo país. Fartei-me de viajar, chegava a ir a três, quatro escolas por dia, e aprendi muito com as crianças – não são só elas que aprendem connosco. Mas durante o Covid meti-me nos Zooms, nos Teams, nessas plataformas, e agora também estou viciada nisso. Comecei a pensar ‘é triste, mas chego à conclusão que eu, neste momento, já sou um dinossauro. Será normal um dinossauro andar aí dinossaureando? Não, eu vou mas é andar nos Zooms. Este fim-de-semana, estive na Barquinha”, partilha entre risos. “E se conseguir que as crianças gostem de ler, fiz a minha missão. É a mesma coisa que um cozinheiro fazer uma sopa para o almoço.”
Zoodário – Um abecedário animalesco, de Luísa Ducla Soares (texto) e Eli Gallego (ilustração). Porto Editora. 64 pp. 13,30€ | O meu primeiro dia de escola, de Luísa Ducla Soares (texto) e Sandra Serra (ilustração). Texto Editores. 48 pp. 11,50€
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