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Luísa Sobral espanta-se quando nos ouve elencar tudo o que fez durante os anos da pandemia. “É engraçado. Somos muito exigentes connosco próprios. Se olhar para trás, acho que estive parada”, diz-nos. Não esteve. Encontramo-nos na esplanada do Este Oeste, no Centro Cultural de Belém, para a primeira entrevista que a cantautora – é assim que gosta de dizer – deu a propósito do novo álbum, DanSando, lançado a 21 de Outubro. É o sexto de originais, 11 anos depois da estreia com The Cherry on my Cake. É uma manhã amena no início do Outono. Os turistas andam lá ao fundo, para trás e para diante, de mapas ao vento, sempre a avançar. De certa maneira, Luísa movimenta-se da mesma forma: como se serenamente vogasse pelo mundo, mas decidida a ver o que veio para ver.
Quase dois anos depois de ter lançado um podcast [O Avesso da Canção], depois de muitas horas a conversar com artistas, está de volta ao lugar da entrevistada.
Agora sou muito mais exigente! [Risos.] Estou a brincar. Eu sei que vocês não têm o tempo que eu tinha. Eu tinha o tempo todo que quisesse para preparar as entrevistas, e só ia quando estava completamente pronta.
Mas qual dos lugares é que prefere?
Foi giro brincar aos jornalistas. Gostei. Mas, às tantas, fiquei cansada. Porque fazia uma pesquisa exaustiva. Ia ver quase todas as entrevistas daquelas pessoas. Tudo. Queria ter palavras delas. Coisas que elas disseram, não que disseram sobre elas. Eram muitas horas. Do Sérgio Godinho, por exemplo, havia muitas entrevistas. Do Fausto, poucas…
Nós, jornalistas, temos uma certa dificuldade de acesso ao Fausto...
Eu sei! [Luísa faz uma pose orgulhosa.] Tive um exclusivo. [Risos.] Eu sou artista, é mais fácil. Foi a entrevista que me deu mais gozo. Senti-me muito mais rica musicalmente depois de o ter entrevistado e de ter mergulhado na música dele. O podcast acabou por ser muito enriquecedor, ajudou-me muito na escrita. Acabei por ganhar muito com isso também.
Fazer esses trinta e muitos episódios foi uma forma de se manter junto dos artistas de quem gostava durante estes anos de tormento?
Por acaso, não. Já tinha vontade de fazer este podcast. Eu sou um bocado obcecada com processos criativos.
Queria fazer, mas não tinha tempo.
Andava a fazer concertos e outras coisas e não conseguia. Então, quando isto [a pandemia] aconteceu, tive tempo para me dedicar. Depois acabou por se transformar em três temporadas. Entrevistei a geração acima da minha, as pessoas que, se a vida correr naturalmente, são as que vão estar cá menos tempo. Por isso, gostava de deixar esse legado, essas conversas. Dessa geração, sinto que entrevistei toda a gente que queria.
O podcast foi também uma desculpa para conhecer pessoalmente estes artistas?
Ah, claro. E a verdade é que ganhei também com isso, porque fiquei mais próxima dessas pessoas. Passado um tempo, o Vitorino ligou-me a convidar-me para um concerto. De vez em quando o Sérgio ligava-me... Ou seja, fiquei um bocadinho mais próxima dessas pessoas, que para mim estavam um bocadinho longe. Senti que afinal estávamos todos ao mesmo nível.
A Luísa esteve muito activa neste período: além do podcast, editou um livro, um mini-álbum, singles, montou um espectáculo com o António Zambujo, o César Mourão e o Miguel Araújo, o Desconcerto, e outro com o Salvador a revisitar as canções da vossa infância… Foi a forma que encontrou para se manter à tona?
É engraçado. Nós somos muito exigentes connosco próprios. Se olhar para trás, acho que estive parada. Ouvindo assim, é verdade: estive a fazer imensas coisas. Mas agora ando a praticar o contrário, por causa de um podcast da Mariana Alvim sobre escritores [Vale a pena]. Ouvi um [episódio] com o Martim Sousa Tavares em que ele fala de um escritor a propósito de termos de estar sempre a fazer muita coisa para mostrar que somos válidos. E que esse escritor praticava o oposto: ficava horas sentado a olhar para as pessoas. Comecei a perceber que faço isso e estou a tentar fazer menos e aproveitar mais o mundo que me rodeia. Não estar sempre a atirar em todas as direcções. É uma estupidez. Mas também estava em casa com três filhos. E tive uma filha no meio da pandemia. Acho que foi uma maneira de manter a sanidade mental. Se não fizesse essas coisas, se calhar não era tão fácil.
Sentia necessidade de produzir para ficar bem.
Sentia. Já que não dava espectáculos – quer dizer, dei esses do Desconcerto, mas foram cinco, e dei também quatro ou cinco com o meu irmão –, sentia necessidade de fazer alguma coisa que fosse intelectualmente estimulante, para além de ler.
Ler é algo que a ocupa muito. Além dos livros que vai partilhando no Instagram, também tem um projecto chamado O Livro Vadio.
É, nunca mais lá fui... [Luísa suspira.] Lá está, outro projecto em que me meti, que era para pôr os meus livros a circular. É super-giro, mas não consigo dar vazão àquilo. Eu odeio redes sociais. Estou a tentar fazer um bocado as pazes com aquilo, porque percebo que é uma ferramenta de trabalho essencial. O meu sonho seria ter redes sociais e não ter que lá ir. Mas já percebi que não dá. Tem que se ir alimentando aquele bicho – e eu vou. Criei uma página onde punha os livros que lia, e depois as pessoas iam-me dizendo se queriam o livro e eu ia fazendo uma lista de espera – mas pus 30 livros. Cada pessoa que me enviava [uma mensagem], eu punha na lista de espera para o livro, e dava à pessoa anterior a morada da seguinte. Não sei porquê que me pus a fazer isto. Dá imenso trabalho! E agora não vou lá há imenso tempo. Tenho montes de mensagens por ler e não quero ir, porque não sei o que será. Devem ser pessoas a dizer que o livro não chegou. Estou a evitar.
Transformou-se num pesadelo logístico.
É gerir as pessoas, as moradas de cada uma e de quem é que manda para quem, e quando. Mas aquilo é muito giro. As pessoas escrevem no livro. Eu escrevi o meu nome e o sítio onde moro, depois as pessoas punham o seu nome, o sítio onde moram e a data. E íamos criando isso nos meus livros. Agora deve haver alguém que quer devolver o livro e não estou a responder. Tenho de responder! Mas estou a evitar. Vejo ali as coisinhas das mensagens e eu: ai, meu Deus!
O quê que a faz não gostar das redes sociais?
O tempo que se perde a ver a vida dos outros. Eu às vezes perco. Ponho-me a ver aquilo assim [imita um scroll infinito].
Estão feitas para não nos deixarem sair.
Exacto. O tempo que se perde a ver aquilo que os outros querem que se veja da sua vida. É muito pouco realista. Além disso, é tempo que perco. Em vez de estar a viver, estou a olhar para um ecrã a ver outros viver. É estúpido. Eu própria me sinto parva quando perco tempo com aquilo. Agora, normalmente ando com um livro. Se estou sem fazer nada, leio. De repente, parece que só existimos se estivermos a postar. Isso chateia-me. Sinto que não é sequer natural para a minha geração andar de telefone em punho a fazer vídeos. Para a geração um niquinho abaixo, já é. Acontece-me sempre fazer qualquer coisa e a seguir pensar: eh pá, esqueci-me de tirar uma fotografia. Se estou com a minha família, passo o fim-de-semana todo sem telefone.
E nos espectáculos, quando o público está com o telefone na mão?
Odeio.
A filmar e a fotografar?
Não me chateia tanto. Porque ao menos estão ali, apesar de estarem através de um ecrã. Chateia-me é que não tenham noção. Hoje em dia, as pessoas não conseguem aguentar hora e meia sem olhar para o telefone. Não têm noção que quando olham para o telefone ficam iluminadas. É um foco na vossa cara. Tipo, sou eu que estou a mexer no telefone. Não acredito que todos tenham urgências médicas. Não aguentam!
Mas e a necessidade de partilharem que estão no concerto da Luísa Sobral?
Eu nunca tiro fotografias durante concertos. Mas pronto. São os tempos modernos, não posso ter uma conversa de velha que não se pode adaptar a nada. Uma pessoa tem de se adaptar e encontrar o seu espaço ali. As redes sociais, para mim, são isso. Odeio expor a minha vida pessoal, mas é isso que as pessoas mais gostam de ver. Então, como é que vou mostrar um bocadinho mais de mim sem me expor demasiado? É difícil essa gestão.
Falando em concertos, até há poucos meses, artistas, técnicos e muitos outros que trabalhavam na indústria da música viviam com a corda na garganta. Quando julgávamos que o pior tinha passado, este Verão acordámos para um problema estrutural: a falta de mulheres nos cartazes dos festivais. Sente que tem menos oportunidades por ser mulher?
Não estou na parte de agenciamento. Quando um concerto não é marcado comigo, ou quando está entre mim e um homem e não sou escolhida, não chego a saber. Só sei dos concertos que vou fazer. Estou protegida nesse sentido. Ou cega. Sei que isso existe, não estou a dizer que não. Mas tenho a sorte de nunca o ter sentido neste meio. Nunca, não. Já senti algumas vezes, mas muito poucas. Também me rodeio sempre das pessoas certas. No fundo, sou a patroa. Se alguém não me tratar bem, essa pessoa não trabalha comigo.
Estava a pensar em situações em que se questionasse porque é que nunca tinha ido tocar a determinado sítio.
Já me aconteceu, mas nunca penso que é por ser mulher. Se calhar, é. Por exemplo, adorava tocar no Paredes de Coura.
Precisamente a raiz da conversa neste Verão.
É verdade. Mas [neste Verão] o meu disco já tinha quatro anos. Nem sequer pensei porque é que não me chamaram. Mas pensei sobre as minhas colegas, obviamente que sim. Eles tinham uma mulher só. Era muito absurdo. Tivemos uma discussão sobre isso no carro, em banda, porque alguns músicos diziam que não faz sentido que, quando uma pessoa está a fazer uma selecção, tenha de escolher mulheres, se acha que os projectos dos homens podem ser mais interessantes. Discordo. Estamos a passar uma fase de transição. É como, por exemplo, nas universidades dos EUA, que têm de ter uma percentagem de pessoas negras porque é necessário tornar isso normal. Os programadores devem ter essa noção.
Ou seja, até ser normal, comum, os programadores devem fazer esse esforço.
Não acho que seja um esforço. Há projectos femininos maravilhosos. Até me irrita um bocado pensar que isso é um esforço.
Esforço no sentido de estarem conscientes desse problema.
Exacto. Devem ser conscientes dessa desigualdade. [No Vodafone Paredes de Coura,] acho que era só a Rita Vian que estava. Ela é incrível. Mas há tantos projectos incríveis de mulheres, que não acho que seja um esforço.
Um dos argumentos que se ouve habitualmente é que faltam artistas mulheres para programar. Faltam?
Bolas, não é de todo verdade. Quando era miúda, havia muito poucas cantautoras. Hoje em dia, há um mar. Na música, acho que é quase igual os homens e as mulheres. Ainda há pouco tempo fizeram um jantar só de cantoras e instrumentistas e elas eram 90. Uma loucura. Não há falta de mulheres na música.
Não é caricato que essa falta de representatividade aconteça num país em que a maior estrela da música popular é uma mulher – a Amália?
Achei que era a Nossa Senhora! [Risos.] Eu não sou religiosa, mas venho de uma escola católica em que se pergunta: quem é o teu melhor amigo? É Jesus! São traumas de infância. Mas é engraçado. Eu acho que todos os países têm a sua Amália, a Edith Piaf, a Ella Fitzgerald... São quase sempre mulheres. É igual àquela coisa dos países que têm um matriarcado muito forte, mas depois são super-machistas. Não se percebe. Por exemplo, agora fiquei chocada com Itália, por ter sido eleita uma mulher primeira-ministra, [Giorgia Meloni], porque é um país super-machista. Nunca pensei. Tem a ver com [o facto de] ser de extrema-direita ser mais forte do que ser homem ou mulher.
Sim, até agora nunca tinha sido eleita nenhuma mulher primeira-ministra, e em Itália não faltam primeiros-ministros...
Pois, mas agora também temos muito mais mulheres na política.
Sobre a condição feminina, o novo álbum tem uma canção particularmente pungente, em que diz: “E quando eu sozinha sou perigo/ mas quem tem medo sou eu./ Quando a beleza é o inimigo/ mas quem inventou foi Deus.” Nos dias que correm, estas palavras colam-se à revolta das mulheres iranianas.
É impressionante!
Mas quando as escreveu estava a pensar no Afeganistão.
Sim, porque vi uma notícia de uma mulher a defender os direitos das mulheres no Afeganistão e fiquei super-impressionada, porque acho que é preciso ser muito corajosa para o fazer no Afeganistão. E de repente aconteceu isto com esta mulher iraniana [Masha Amini, 22 anos, que morreu depois de ter sido detida pela “polícia da moralidade” do Irão por alegado uso indevido do hijab]. Até tenho vontade de fazer um vídeo dedicado a ela.
Estabelece-se uma relação imediata entre canção e realidade.
É impressionante. Mesmo a questão da guerra. O meu pai dizia: e se acabar a guerra na Ucrânia antes de sair o disco? Eu disse: há sempre guerra na televisão. Infelizmente, há assuntos que não passam de moda. Mas essa história eu ouvi e pensei: uau. Depois fiquei fascinada com as mulheres a revoltarem-se e a queimarem burcas em protesto, a unirem-se.
É comovente ver as mulheres na linha da frente, em cima de carros, a liderar. Mesmo os homens que estão com elas deixam-se ficar em baixo, num papel secundário.
Mas estão com elas! Quero mesmo fazer alguma coisa com esta canção e esta história. Encaixa na perfeição. Já estou a engendrar uma maneira de ligar as duas coisas e de a dedicar a esta mulher, que no fundo acaba por representar tantas mulheres e que pode – pode – significar um ponto de viragem. Vamos esperar que signifique alguma coisa e que as pessoas não se esqueçam, como se estão a esquecer da guerra na Ucrânia.
Agora, com a mobilização dos russos, o tema voltou a impor-se. Também por isso, “Há Guerra” é outra canção na ordem do dia. Fala sobre “soldados de improviso”, sobre velhos e novos de armas na mão, e também sobre a culpa de quem se deixa ficar a ver pela televisão. Pior: de quem se deixa ficar a cantar. É assim que se sente?
Sim. Agora, ainda me sinto pior: estou a ver o telejornal e “ai, já não há paciência para isto”. Sinto-me ainda mais culpada. Na altura, o que fiz para tentar lidar com a minha culpa foi acolher uma família ucraniana. Ficaram lá a viver três meses e agora já estão em Alcobaça. Foi a maneira de tentar contribuir e não me sentir completamente inútil durante essa fase.
Como é que isso se processou?
O processo, sinceramente, funciona muito mal. As instituições acharam óptima ideia trazer imensos ucranianos para Portugal, mas depois deram zero apoio às famílias que os acolheram. Zero. Não são organizações, são desorganizações. Tive de descobrir tudo sozinha. Estava grávida de nove meses e andei a fazer tudo com a Lena, a rapariga que estava em minha casa com os dois filhos. Eu é que encontrei uma escola, eu é que os inscrevi, ninguém me ajudou com nada. Eu é que percebi se ela tinha ou não dinheiro para fazer compras, eu é que fui com ela ao SEF, à Segurança Social, tudo. Ia lá super-grávida, e nunca me davam prioridade, porque diziam que não era para mim. Ficava horas na fila.
O SEF é terrível…
No SEF, fui super-maltratada quando eles achavam que eu era ucraniana. Muito mal.
Depois melhorou?
Quando começava a falar português, eram mais simpáticos. “Para ali já!” A mandarem-me assim para a fila. Como se fosse gado. Percebi como é que tratam os imigrantes. Mesmo depois, para encontrar casa para ela, foi uma amiga do meu marido, que fala ucraniano, que a ajudou. Ela não falava nada de inglês. Era tudo com o Google Translator. Foi muito difícil. Ninguém me ajudou nunca. Nunca me ligaram. Depois, percebi que era assim. Aliás, uma amiga tem uma senhora ucraniana a viver em casa dela que parece que não está com intenção de se ir embora, há imensos meses. Ela não sabe o que há de fazer e na organização ninguém a ajuda. É complicado.
Esta canção era uma espécie de expiação da culpa que sentia?
Era. Sentia que era um bocado absurdo estar a dar um concerto a fingir que nada estava a acontecer. Estar a cantar e a dizer: “ai, esta escrevi para o meu filho; lá-lá-lá; adeus, obrigada, obrigada!...” E há uma guerra ali. Não conseguia não a cantar. Tinha sempre de acabar o concerto com essa canção. OK, vamos aproveitar a vida, os amigos, a família, não podemos fecharmo-nos todos em casa porque há uma guerra. Temos de continuar a dar graças àquilo que temos, mas não esquecer que há uma guerra. Quando as pessoas se esquecem é quando o pior acontece, e temos de estar em cima do que está a acontecer.
Como é que foi o processo de composição e produção deste disco?
Este foi o mais diferente de todos. Normalmente, vou escrevendo. Mas estava numa fase em que escrevia canções para outras pessoas, não para mim. Então decidi tirar o piano de casa. A minha mãe [Luísa Villar] tem um espaço de culinária, onde cozinha e onde faz até um programa de televisão [MesaLuísa], no Cais do Sodré. Pus lá o piano, e quando ela não tinha clientes fazia horário de trabalhador. Eu moro na Linha. Deixava os meus filhos na escola, apanhava o comboio, ia para lá, mandava vir almoço, e passava o dia a escrever. Foi assim. Fiz isso durante um mês e tal, e todos os dias saía uma canção.
Na conversa com a Márcia, disse que tinha decidido fazer as coisas assim por causa do Get Back, a série documental sobre os Beatles.
Pois foi. Esse documentário é super-inspirador. Andei a ver isso na altura e pensei: desafio aceite! Vou tentar escrever uma canção por dia.
Não lhe pareceu extraordinário o quão miúdos eles eram na altura, a fazer aquelas canções em tempo real?
Também não era completamente verdadeiro. Eles não chegam ali e escrevem uma canção. Isso fez-me sentir um bocadinho melhor comigo mesma. Já iam com coisas. Mas não deixam de ser geniais.
Ainda assim, vê-se que tinham uma certa facilidade em criar aquelas canções.
É impressionante. Os meus filhos estão agora completamente obcecados por Beatles. Eu cheguei a uma fase que nunca pensei que fosse acontecer: às vezes não me apetece ouvir Beatles. Porque eles entram no carro e dizem: queremos Beatles. E eu já estou a dar em doida porque é Beatles a toda a hora. Quando vi esse documentário, eles ainda não estavam nessa fase. Vi sozinha. É incrível a capacidade deles, sim. Mas para mim, mais do que tudo, é um processo solitário. E é mais fácil no sentido em que sou tudo eu. Vem tudo da minha cabeça e é tudo coerente. Ali é o encontro daquelas pessoas todas... Eu fiquei a gostar mais do Paul McCartney. O meu pai sempre foi super-fã do John Lennon, então achava que o Paul McCartney era um bocado mau com ele. Cresci a pensar que ele era assim uma pessoa mais fria e menos artística... Bem, mudei completamente de ideias. Os Beatles não existiam sem o Paul McCartney. Ele era o cérebro da coisa e a pessoa que organizava aquela malta. Fiquei super-fascinada com o papel dele porque eu sou assim um bocado igual a ele: muito metódica, muito organizada.
O podcast teve influência nas novas canções?
Acho que sim, porque fui ouvindo muita música. Mas houve uma coisa que me disse o Carlos Tê. Eu andava a tentar escrever poesia e depois musicá-la, porque achava que assim a minha poesia ia ser muito mais profunda, muito mais bonita, muito melhor. E o Carlos Tê disse-me: não faças isso. Se consegues, faz sempre as duas coisas ao mesmo tempo; isso é que é o dom, que a música e a letra sejam consequência uma da outra. Para mim, o Carlos Tê é uma grande referência, e então fiz o disco todo assim. Se o Carlos Tê disse, eu faço. [Risos.]
A sonoridade também está diferente. Conseguiu o som de São Paulo que queria?
Sim. E consegui a leveza que queria. O meu último disco não tem nada a ver com este: é duas guitarras, um trio de sopros clássico, e as canções são muito mais melancólicas, tristes talvez. E eu queria um disco alegre. Porque me sinto numa fase de vida muito alegre. Queria música que pudesse dançar com os meus filhos. Eu punha a minha música em casa e o meu filho dizia: porque é que a tua música é tão baixinha? E não era baixinha, não dava era para dançar. Nós dançamos muito em casa, mas não havia nenhuma canção minha que desse mesmo para dançar. Talvez o “Xico”. E eu queria dançar com os meus filhos a minha música. Queria que eles curtissem a minha música. E eu queria curtir a minha música dessa forma em palco. Estou sempre muito sentada, queria estar em pé. Obviamente que tenho os dois lados [no disco]. Não deixo de ter canções mais introspectivas. Não desapareceu esse lado. Mas ao menos há os dois. Disse logo ao Tó [Brandileone], o produtor que trabalhou comigo: quero um disco feliz. Que as pessoas ouçam e sintam alguma leveza depois.
Daí o som de São Paulo.
São Paulo está com um som agora muito internacional. Intemporal. Fresco. Sentia muito isso com a música de lá, e com a música que o Tó produz.
Como é que se conheceram?
Eu conheci-o há dez anos em Paris e já queria trabalhar com ele há este tempo todo.
Este lado mais construído das canções é então obra dele.
Completamente. Nunca tinha trabalhado assim. Eu sou muito, muito controladora, e trabalhar à distância parecia-me muito difícil. Mas depois percebi com ele que temos uma maneira tão, tão igual de ver as coisas, que só em duas canções que ele me mandou é que senti que não era exactamente [o que procurava]. Mas estava quase, era só trocar um instrumento. Mas quase todas eram exactamente, e muito melhor, o que eu imaginava. Por isso foi tão fácil trabalhar à distância, mais fácil às vezes do que trabalhar presencialmente. O que fazíamos era: eu enviava-lhe a canção com guitarra e voz, gravava as duas separadas, e ele ia pondo instrumentos e mandava-me. O que achas disto? E íamos trocando assim.
Depois juntaram-se.
Claro. Não podíamos fazer um disco inteiro à distância, não fazia sentido para mim. Quando foi para gravar vozes, trouxe-o cá para passarmos uma semana a gravar vozes e a estar juntos e a curtir o disco juntos, para sentirmos que era uma coisa nossa. Ainda gravámos aqui um contrabaixo, do António Quintino, que toca comigo; os dois duetos, também, com o João Cunha, que era um aluno meu do curso de escrita de canções, e com o Tó...
Então era por isso que não estava a conseguir identificar o João Cunha.
Ainda não é conhecido. O João foi meu aluno em duas aulas de escrita de canções que eu também fiz online durante a pandemia (lá está mais uma coisa). E eu passei-me – com a voz dele, com as canções dele, com a maneira dele de tocar guitarra... Ele é maravilhoso. Então, escrevi esta canção [“Não Foste Tu”] a pensar na voz dele. E depois pensei: vou chamar alguém que é conhecido porquê? Eu gosto da voz dele. É o João Cunha, ele há-de ser conhecido porque eu sei, porque ele é maravilhoso. E então, chamei-o.
Portanto, ainda não temos nada dele que possamos ouvir.
Não. Eu quero produzir o disco dele. Só que ele é médico cirurgião, neurologista. Começou agora a exercer. E não é que tenha imenso tempo, mas estou a insistir com ele para me ir enviando canções, para ver se consigo ajudá-lo, porque acho que é mesmo muito talentoso.
O disco chama-se DanSando, com s. Porquê?
Porque me enganei. [Risos.] Não, estou a brincar. DanSando com s porque a Sophia de Mello Breyner disse, num documentário que vi sobre ela, e ficou-me para sempre na memória, que dançando antigamente era com s e que trocaram para c de cedilha, e que ela acha que não faz sentido nenhum porque o c está sentado, e dançando deve ter um s que está a dançar. A partir daí, comecei a olhar para as palavras como se elas também tivessem movimento e intenção. Isso foi maravilhoso. E acho que ela tem toda a razão.
Há pouco disse que queria um disco que se pudesse dançar, mas depois a vida acontece-lhe, não é? Já falámos de “Há Guerra” e “Serei Sempre Uma Mulher”. Mas há também “As Mães de Hoje em Dia”, uma crítica às mães que se acham perfeitas nessa função.
Lá está, as redes sociais. No outro dia vi uma rapariga que pôs uma fotografia da filha a soprar um balão e teve logo de explicar: nós sabemos que é perigoso, que os balões podem ir para a garganta... As pessoas sentem uma necessidade de se explicarem que é uma coisa que me irrita. Vivem sempre com medo. Que sufocante esta sociedade de crítica constante! As mães sofrem imenso com isso. Imenso. “A sério, ele está vestido assim? Está imenso frio.” Que seca! Isso [a canção] aconteceu porque uma amiga do meu marido me criticou por eu ter feito uns concertos – aqueles do Desconcerto. Eu estava com Covid, então fiz os concertos a partir de casa. Estava a sentir-me super-mal. Fiquei isolada num quarto em casa dos meus pais para conseguir ganhar forças para fazer os concertos à noite. São concertos super-exigentes: estou três horas a escrever canções espontâneas. O meu marido estava em casa com os nossos filhos, e eu decidi ficar em casa dos meus pais a ganhar força para fazer os concertos. E ela criticou isso: “Não percebo porque é que não podia ter ido para casa.” Irritou-me mesmo. Porque é que tem que criticar a minha maneira de fazer as coisas? Quem julga a minha maternidade sou eu – e já julgo bastante.
Sendo mãe de quatro, um dos quais bebé, fazem-lhe muitas vezes comentários desses, ou as pessoas retraem-se por ser a Luísa Sobral?
A mim, não. Mas quero lá saber. Estou em paz com a minha maneira [de fazer as coisas]. Uma questão que surge quase sempre e me stressa é: como é que consegue conciliar a vida profissional com os filhos? E nunca ninguém ter perguntado isso ao Miguel Araújo, por exemplo. Chateia-me. Porque é que nós, mães, temos logo a coisa de estar a abandonar os filhos por causa da carreira, e nunca ninguém pergunta isso aos homens. É horrível, acho que todas as mães sentem culpa por não estarem tempo suficiente [com os filhos]. Mas eu quero amar aquilo que faço e quero passar isso aos meus filhos. Por isso, para mim, dá para fazer as duas coisas.
Em Maio, editou um livro infantil, Quando a porta fica aberta, com ilustrações da Camila Beirão. Uns meses antes, ainda em 2021, tinha saído o mini-álbum Camomila, de canções de embalar. Mas já tinha feito o “João” e o disco Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa, e “O Bairro do Panda”. É-lhe inevitável reincidir no universo infantil?
Quando fiz “O Bairro do Panda” e o disco para crianças [Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa, 2014], não era mãe. Acho que foi isso que fez o tic-tac no meu relógio. Começou assim uma vontade. Então, fui buscar experiências minhas enquanto criança. Agora foi engraçado, para as canções de embalar, estar inspirada já nos meus filhos. Por exemplo, há uma canção que se chama “Estrela Carente” porque o meu filho uma vez me disse: mãe, vi uma estrela carente. E eu: ai, isto é maravilhoso! Nunca lhe disse que não é estrela carente. Acho muito mais bonito do que estrela cadente. E escrevi uma canção sobre isso.
Acha que há bons discos de música para crianças?
Há um do B Fachada que é muito bonito. Quando voltei dos EUA, ouvi-o e adorei. Chama-se B Fachada É Para Meninos [2010]. E há um que saiu há três anos – até me emocionei a ouvir o disco, pensei “é isto!” – que é o Canções de Roda [2019].
Com a Ana Bacalhau, o Vitorino...
... o Sérgio Godinho e o Jorge Benvinda. Tem uns arranjos maravilhosos do Filipe Raposo. É muito bom! [Luísa enfatiza o muito.] Mas os meus filhos não ouvem muito músicas para crianças. Agora descobri outro que adoro, das Sopa de Pedra. São cantares tradicionais e é muito bom também. Mas, lá está, eles ouvem Beatles. E Rio Grande, e coisas de que eu gostava quando era miúda. Os meus pais nunca tocaram músicas para crianças no carro, nunca ouvimos. Ouvíamos Beatles, que o meu pai era obcecado; ouvíamos muito GNR...
Tenho a mesma experiência com o meu filho. Não se interessa muito por músicas para crianças. Está obcecado pelo David Fonseca agora, por causa do concerto no Chefs On Fire. Ele queria muito ouvir a “Oh My Heart”, e disse-lhe para gritar para o palco a pedir. Por acaso foi a canção seguinte no alinhamento; ficou siderado. Pensou que foi por ele.
Ai, que querido!
Mas agora temos um problema: estamos há uma semana a ouvir ininterruptamente o “Oh My Heart”, desde as sete da manhã até à noite.
Ai, meu Deus!
Gostou de tocar no Chefs on Fire?
Esse concerto foi muito giro para mim. Como era cedo, levei os miúdos todos. Os meus filhos puseram-se ali muito perto do palco e a cada canção iam subindo um degrau. Às tantas, chamei-os e eles cantaram o último tema comigo. Raramente faço isso. Mas eles foram tão felizes a cantar. No fim, o meu filho diz-me assim: fui muito corajoso, cantei à frente de mil e dez pessoas! [Risos.] Foi muito especial porque é raro expor-me, não gosto.
Há dias, quando fez 35 anos, escreveu nas redes sociais que tinha um novo projecto familiar: vai viver para uma quinta com horta, pomar e animais. Cansou-se da cidade?
É o meu sonho de vida já há tantos anos!... Mas é a 15 minutos daqui. Eu já me cansei da cidade há imenso tempo. Já não vivo em Lisboa há seis anos. Primeiro, porque não está fácil para vivermos cá, com os preços que se praticam. Eu queria uma casa com espaço exterior para os meus filhos – e não consigo tê-la em Lisboa. Também já estava farta de viver aqui, era muito trânsito, estacionamento, tudo. Apesar de adorar Lisboa, não estava a dar. E nem eu nem o meu marido temos profissões em que seja preciso vir a Lisboa todos os dias. O meu marido é treinador de cães. Vai começar o negócio dele na quinta, com um hotel de cães e tudo. E eu tenho um espaço inspirador para compor.
Ia perguntar como ia ser viver no campo sem a comidinha da mãe, mas sendo a 15 minutos a pergunta já não está a valer.
A minha mãe vai lá, ou eu venho cá. E também cozinho muito bem! Além de que, apesar de a minha mãe cozinhar super-bem, sou vegetariana – o que lhe dificulta imenso o trabalho. Ela é expert nos peixes e nas carnes. Coitada, muitas vezes não como aquilo que ela faz.
É vegetariana há muito tempo, não é? O que a fez tomar essa decisão?
Há 15 anos, para aí. Quando fui viver para os EUA, comecei a ficar doente com as hormonas da carne deles. Foi mesmo físico. Comecei a ficar mesmo mal. E decidi tirar. Como vivi lá seis anos, depois nunca mais me apeteceu [reintroduzir a proteína animal].
Estou a tentar fazer menos e aproveitar mais o mundo que me rodeia. Não estar sempre a atirar em todas as direcções.
Já compôs para Ana Moura, António Zambujo, Sara Correia, Mayra Andrade ou, com um sucesso talvez inigualável, para o Salvador. Mas, ainda antes dos concertos de promoção do novo disco, vai à minha terra natal, a Póvoa de Varzim, cantar “as canções que ninguém quis”. São muitas?
Algumas. Não muitas. Normalmente, corre bem. Tenho uma que escrevi para a Ana Bacalhau, que ela não quis. Uma que escrevi para a Cláudia Pascoal. Uma que escrevi para a Carminho, que ainda não percebi se vai querer ou não, se entra ou não no [novo] disco. Uma que escrevi para a Cristina Branco. Também já escrevi para a Gisela João e ela não quis. Ainda tenho uma listinha. Mas não levo a peito. Eu escrevo muito. Tem a ver com não ser a canção que fica bem, que não faz sentido naquele disco. Às vezes tento encaixá-las noutra pessoa. Mas chateia-me isso, porque escrevo a pensar na voz daquela pessoa.
E cantá-las a Luísa, não?
Essas canções nunca fazem sentido para mim. Não consigo cantá-las. Por exemplo, a da Cláudia Pascoal. Pensei mesmo naquela coisa muito jovial e naquela loucura dela, que não encaixa na minha personalidade. Para a Ana Bacalhau, ainda era um bocado Deolinda na minha cabeça e ela está agora noutro registo. Escrevi com aquela coisa do gozo ainda. Era engraçada: era sobre uma vizinha que está entre meter-se com o vizinho do lado esquerdo ou o do lado direito, porque num dos lados ela consegue aumentar a casa, e no outro consegue ganhar um espaço exterior. Então, está ali sem saber se há de se meter com um ou com outro, porque tem coisas a ganhar dos dois. Para mim, é muito jocosa. E quando escrevo para fado, então, não encaixa mesmo. Escrevi agora para o Luís Trigacheiro – e ficou perfeito na voz dele. Para a Elisa – também ficou perfeito na voz dela. Mas não ficaria na minha. Ouço mesmo a voz deles cá dentro.
Não tem vontade de fazer uma tangente ao fado?
Cantar fado?! Nenhuma! Primeiro porque o meu pai passou a minha infância a dizer que eu cantava pessimamente fado. Traumatizou-me logo aí. Se calhar até seria uma fadista óptima! [Risos.] Ele dizia sempre: o teu irmão ainda dá; tu... péssimo. Acabou com a minha carreira de fadista. É um estilo de que gosto, mas que também não consigo ouvir muito. Adoro fado-canção. Um concerto inteiro de fado tradicional é um bocadinho cansativo já. Gosto dos fados-canção da Amália. Ainda agora houve aquele projecto do Raül Refree com a Lina, e eles tinham lá um fado da Amália que não conhecia: “Medo”. A coisa mais maravilhosa do mundo. Nunca tinha ouvido.
E é uma boa versão, de resto.
Esse disco é muito giro. É um desafio interessante tentar escrever dentro da métrica do fado tradicional. Mas eu gosto mais do fado-canção. Tem mais a ver com a minha música.
Além do “Há Guerra”, tem tocado canções do DanSando ao vivo?
Quase todas. Estou um bocado saturada do meu outro disco [Rosa, 2018]. E tenho essa coisa: assim que tenho canções novas, tenho vontade de as tocar. Não tenho problemas com isso. Apetece-me, mostro. Até porque eu não tenho muitos hits. Sinto que as pessoas que vão aos meus concertos gostam da minha música em geral. O que é bom. Tenho um público ao qual posso mostrar coisas novas. E tem corrido bem.
Mas haverá uma digressão dedicada a apresentar o disco.
Sim. E estes concertos em que o tenho mostrado são só a duas guitarras, como o do Chefs on Fire. Nunca toquei ainda as músicas como elas vão estar, com a banda toda.
A digressão ainda não tem datas. Vai começar ou acabar em Lisboa?
Lisboa é só mais tarde, em Fevereiro [de 2023]. Quando [o disco] já estiver rodado, fazemos Lisboa e Porto. Aliás, a estreia do concerto com banda até vai ser na Alemanha. Primeiro experimentamos lá fora, depois, quando já estiver bom, voltamos para aqui.
Casa da Música (Porto). 18 de Feveriro (Sáb) 21.30. 15-25€; Tivoli BBVA (Lisboa). 25 de Fevereiro (Sáb) 21.30. 15-25€
Esta entrevista foi originalmente publicada na edição Outono 2022 da Time Out Lisboa