[title]
A pesada porta abre, por fim, revelando uma das jóias da coroa do futuro Museu de Arte Contemporânea Armando Martins (MACAM). Num edifício ainda em obras, a capela serve, por agora, de câmara de acesso a uma das empreitadas mais ambiciosas da década, no que diz respeito à oferta cultural da cidade. De um palácio do século XVIII está prestes a nascer um novo museu e um hotel – 13.000 metros quadrados idealizados por um coleccionador que quer, finalmente, trazer a público a arte acumulada ao longo dos últimos 50 anos.
Já esteve para abrir em 2021, prazo que foi sendo sucessivamente recalculado, em virtude da pandemia e da complexidade da intervenção. A nova – e realista, segundo a direcção do museu – previsão aponta para o final deste ano. “A obra teve um avanço muito grande nestes últimos meses. A parte do museu está praticamente pronta. Em alguns espaços ainda se vê a obra em bruto, mas acredito que nos próximos meses se consiga fechar. A expectativa é abrir no final do ano e acho que vamos conseguir cumpri-la”, começa por assinalar Adelaide Ginga, directora do MACAM e uma das anfitriãs daquela que foi a primeira visita ao interior do futuro museu.
A encabeçar o percurso está Armando Martins, o homem cujo apetite coleccionista culminou nesta grande empreitada. É aqui que vai depositar as mais de 600 obras de arte que compõem a sua colecção pessoal, iniciada em 1974 e já distinguida pela Fundação ARCO, em 2018. Adelaide fala numa colecção “armazenada há anos” e de coleccionador de arte que, impossibilitado de expor e de, por isso, usufruir de muitas das peças adquiridas, “continua a ter o impulso de comprar”.
No piso térreo do palácio, o museu estará dividido em duas alas. Para a direita, o núcleo de arte contemporânea, repleto de autores internacionais, mas também portugueses. A começar em 1980 e até à actualidade, este ramo da colecção abrange mais de 280 artistas, incluindo nomes como Marina Abramovic, Olafur Eliasson, Rirkrit Tiravanija, Dan Graham ou Vik Muniz, e vários suportes artísticos.
À esquerda, o espaço estará reservado à criação portuguesa. Com especial foco no Modernismo, a viagem começa ainda no final do século XIX, percorre as vanguardas do início do século XX e estende-se até ao final da década de 80, com todos os grandes nomes da arte em português, desde Souza-Cardoso e Almada Negreiros a Vieira da Silva e Paula Rego, entre muitos outros notáveis.
Um museu muito moderno
Mas o velho Palácio Condes da Ribeira Grande é apenas a face visível do museu. A tardoz, fica a ala do MACAM que nasceu do zero – edificação contemporânea projectada pela Metro Urbe, de fachada rendilhada e com duas salas dedicadas a exposições temporárias. “Sei que esta vontade de expor é comum a outros coleccionadores que, na maioria, não têm um espaço para apresentação das suas colecções. Vem daí o conceito de house of private collections – temos a colecção privada do MACAM exposta em permanência e em exposições temporárias mais focadas em temas relevantes da actualidade, mas temos também um espaço dedicado a apresentar outras colecções privadas que não sejam de acesso público”, adiciona a directora do museu.
O edifício, que alberga ainda um auditório, já mereceu atenção internacional. No início do ano, foi distinguido pelos Surface Design Awards, na categoria de Edifício Público, entre candidatos de todo o mundo. Na origem do prémio está a fachada projectada pela ceramista Maria Ana Vasco Costa. “Conheci o Armando em plena pandemia. Já conhecia o meu trabalho com azulejos, normalmente mais pequenos, e queria fazer uma espécie de pele para o edifício, que deixasse passar a luz, e eu sem saber como é que ia acontecer, sendo o azulejo um material com tanto peso”, recorda Maria Ana, enquanto observa a fachada, já perfeitamente concluída, a partir do interior.
O desafio foi, sobretudo, técnico e mobilizou arquitectos e engenheiros na hora de pensar em escala. “Normalmente, faço edifícios que já têm muita informação, de cantarias, janelas, a própria rua. Aqui, havia este bloco quase modernista onde podia criar à vontade”, resume. No total, a fachada conta com 3300 peças tridimensionais, produzidas na zona de Alcobaça e aparafusadas em 55 placas de metal, essas, por sua vez, instaladas uma a uma com recurso a uma grua. Dentro do edifício, os recortes de luz deslocam-se ao longo do dia. Cá fora, no espaço que dará lugar a um jardim de acesso livre e a uma cafetaria e restaurante, a simetria dos azulejos assemelha-se a uma renda delicada. À noite, o espectáculo de sombras é projectado para o exterior.
As primeiras obras já cá estão
A colecção de Armando Martins ainda não se mudou para a Rua da Junqueira, mas algumas das obras especialmente encomendadas para pontos estratégicos do futuro museu e hotel já chegaram. Duas delas são visíveis do lado de fora do palácio. “Há que comunicar ao exterior o que se passa nesta casa e este foi o modo que encontrei de fazê-lo”, justifica Armando Martins.
As obras a que se refere ocupam os dois terraços da fachada principal do palácio. A oeste, ergue-se a escultura de Angela Bulloch, artista canadiana com quem o coleccionador conversava “há muitos anos”. Depois de um primeiro pedido para criar algo para o futuro jardim, acabou por instalar uma das suas esculturas modulares num dos terraços. Uma peça que surge na tradição de volumes geométricos e padrões matemáticos que define a obra de Bulloch, também ela atraída pelo jogo entre superfícies bidimensionais e tridimensionais.
No terraço oposto, vemos a arte de um velho conhecido erguer-se cinco metros acima do chão. Para o coleccionador, desafiar José Pedro Croft a criar uma peça a pensar no espaço foi uma decisão lógica. Presente no acervo, os visitantes do MACAM poderão certamente apreciar outras peças do escultor no andar de baixo – há 20 anos que faz parte da colecção. Por agora, foquemo-nos na arte ao sol e no “barroco austero” da segunda metade do século XVIII que inspirou Croft. “O programa decorativo da arte barroca é sempre confundir os sentidos – vemos a forma e vemo-la desfazer-se, em simultâneo. A partir daí, foi criar formas redondas que se contrapunham às rectangulares pré-existentes”, explica o artista.
Três estruturas, de duas toneladas cada uma, erguem-se no terraço. Os aros ovais surgem total ou parcialmente preenchidos com vidros de três cores vibrantes: azul, vermelho e amarelo. Numa fachada exposta a sul, a luz faz o resto. Ao contrário do primeiro terraço, este será acessível apenas a hóspedes do hotel. E, claro, visível a partir da rua, como faz questão o senhor coleccionador.
O cinco estrelas? Ao cimo das escadas
O museu não está sozinho. No primeiro andar do palácio, que ficará longe dos olhares indiscretos de visitantes, o hotel de cinco estrelas ainda é alvo de trabalhos. Terá 64 quartos, um ginásio, salas para tratamentos e massagens e ainda espaço para eventos corporativos. “Desde o início que houve uma noção muito clara de que queríamos manter o projecto privado, sem estar dependente de fundos públicos, e conseguir ter autonomia para desenvolver o projecto. Como os museus não são propriamente dos investimentos mais rentáveis, houve a ideia de juntar um hotel”, detalha Adelaide Ginga.
O desafio é, precisamente, manter o hotel imbuído do espírito do museu. Como? Além de criar uma ligação mais ou menos orgânica entre os dois espaços – os hóspedes terão livre acesso ao museu, mas não o contrário –, os próprios quartos e corredores vão receber obras de arte da colecção de Armando Martins. “A ideia de ter um hotel que é um ser estranho ao museu fez-me repensar todo o projecto e perceber que tinha de ser um híbrido. Surgiu então a ideia de estender a colecção ao hotel e trabalhá-la de maneira a que as obras estejam num registo mais privado com os hóspedes, sendo originais. Não são reproduções, são obras originais, de artistas nacionais e internacionais, que fazem parte da colecção”, continua a directora do MACAM.
Parte do futuro hotel, a antiga biblioteca é um dos espaços onde ainda decorrem trabalhos de requalificação, nomeadamente pinturas no tecto. O espaço dará lugar a uma sala de estar de acesso exclusivo aos hóspedes e receberá também a colecção de livros – de arte, maioritariamente – de Armando Martins. Outra das prioridades na recuperação dos interiores foi manter as portas, ombreiras e portadas de madeiras nobres. Para isso, nasceu no piso térreo uma espécie de carpintaria de campanha, por onde passaram centenas de peças. A cerca de meio ano da grande abertura, a carpintaria ainda labora.
Uma capela boémia para artes performativas
Conservar e restaurar têm sido palavras de ordem ao longo dos últimos cinco anos e nenhum espaço conta tão bem a jornada que é devolver um palácio do século XVIII à fruição pública como a capela, casa de partida da visita que incluiu a Time Out. Em tons de verde e rosa, com os frescos originais restaurados, o espaço surge iluminado a partir da cúpula. “Havia zonas que, para nós, estavam perdidas. As pessoas não imaginam. Víamos tudo preto, com buracos, madeiras podres, infiltrações”, descreve Adelaide, sublinhando o papel da equipa chefiada por Filipa Quintela, que no currículo traz intervenções no Palácio da Pena, em Sintra, no Teatro São Luiz, em Lisboa, e no Convento de Cristo, em Tomar.
Dessacralizada, a capela será uma das grandes atracções do futuro museu. Ao final do dia, vai abrir portas e receber música, poesia e artes performativas, além de um bar que permita, nas palavras do coleccionador, “juntar pessoas ligadas às artes”. “Um ambiente mais boémio, para recuperar aquilo que, no passado, Lisboa já teve.”
Também aqui, a arte (feita à medida) já está pendurada nas paredes e tem toda a assinatura do espanhol Carlos Aires. “Conheço-o há uns anos. Comprei um vídeo dele muito interessante, que vai ficar exposto aqui no museu, mas ainda antes disso, encontrei na internet um cristo negro, penso que uma encomenda que ele recebeu da Bélgica. Lembrei-me depois que a capela podia ter uma peça desse género e a conversa com o Carlos Aires começou aí”, recorda Armando Martins.
Há, de facto, um cristo negro no altar-mor da capela – apenas revelado após o deslizar de um painel, também da autoria do artista –, mas não veio sozinho. Aires propôs Trinity, projecto que inclui um conjunto de projecções de vídeo sobre esta peça central e ainda outras duas obras, colocadas nos altares laterais. Neles, figuram Nossa Senhora do Carmo, padroeira da capela, e Santo António de Lisboa, ambos em latão polido, sobre fundo negro. “Quando vi este espaço, pensei: vamos fazer algo arrojado. Era certo que teríamos o cristo negro, a partir daí propus ao Armando ter projecções. Foi arriscado, também porque nunca tinha feito nada assim antes e tu nunca sabes muito bem como é que vai resultar”, explica o artista.
“Mas como sou do Sul de Espanha, cresci com estas imagens muito fortes da Igreja Católica. E a minha família tem uma empresa de som e vídeo para discotecas e bares, achei que todo o cocktail seria óptimo”, conclui Aires, que procurou minimizar a irreverência da sua intervenção na capela. “Quando trabalhas com política, com religião ou com sexo, é muito fácil seres provocador. Claro que o trabalho é crítico e reflecte sobre os tempos que vivemos, mas não queria criar algo irreverente, não de uma forma muito directa.”
Uma intervenção para ver ao vivo no final do ano, segundo a estimativa da direcção do MACAM e do próprio coleccionador, um homem “aliviado” por finalmente estar “a começar a ver o fim da obra”. “Agora já se percebe o que é que vai ficar aqui, estamos nos acabamentos. É um alívio. Estou tão envolvido no projecto, praticamente passo aqui os dias todos.”