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“É importante perceber o que é que havia antes, ou melhor, o que é que não havia antes”, declara o professor e musicólogo Rui Vieira Nery, comissário da exposição “Madalena de Azeredo Perdigão (1923-1989): vamos correr riscos”. Patente no átrio da Biblioteca de Arte e Arquivos, junto à cafetaria do Museu Calouste Gulbenkian, é de acesso livre e foi pensada em colaboração com a investigadora, musicóloga e cantora lírica Inês Thomas Almeida, que também nos convida a testemunhar o espírito “feminista, mas não panfletário” dessa figura incontornável da história da Fundação, que foi precursora no ensino artístico e musical em Portugal. É esse legado que se homenageia agora, no âmbito das comemorações do centenário do seu nascimento, através de uma mostra – que reúne desde fotografias e recortes de jornais até documentos inéditos, como cartas – e de uma programação multidisciplinar, que inclui conversas, concertos, filmes e performances.
“Em 1957, quando a Fundação começa a intervir na área da música, praticamente só há uma grande orquestra, que é a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional. Depois há mais umas daquelas orquestras-fantasma, que se reúnem só para uns concertos, assim de muito má qualidade. Há um teatro de ópera do Estado e pequenas sociedades amadoras que organizam concertos e que até conseguem, de vez em quando, trazer um músico importante ou outro, mas quer dizer, tudo coisas muito frágeis. Apesar de, repare, estarmos na década em que aparece, por exemplo, o Ministério da Cultura em França, e começa a haver uma ideia de responsabilidade cívica cultural. Em Portugal, acontece que nada disso existe [ainda]”, esclarece Rui Vieira Nery, que nos guia pela exposição, em exibição até 20 de Julho e com visitas orientadas para Maio (dias 5 e 13, Sex 16.00, Sáb 15.00) e Junho (dias 3 e 16, Sex 16.00, Sáb 15.00).
Nascida a 28 de Abril de 1923, na Figueira da Foz, Madalena de Azeredo Perdigão, a mais velha de três irmãs, cresceu entre os ideais republicanos do pai, um convicto opositor de Salazar, e o catolicismo da mãe – e, apesar de se ter licenciado em Matemática, de ambos herdou uma inegável sensibilidade para as artes. Começou a estudar piano aos sete anos, concluiu o Curso Superior de Piano no Conservatório Nacional de Lisboa, foi bolseira do Instituto de Alta Cultura no Conservatório Superior de Música de Paris e chegou a apresentar-se em concertos com a Orquestra Sinfónica da Emissora Nacional. Infelizmente, foi forçada a abandonar a sua carreira como solista, por uma questão nervosa que afectou a mobilidade da sua mão esquerda, mas nunca deixou de ter um papel activo no domínio da cultura: começou a trabalhar como responsável da Secção de Música na Fundação Gulbenkian (onde o seu marido também foi bolseiro antes de sofrer um enfarte do miocárdio, em 1957), a 1 de Fevereiro de 1958.
Convidada a organizar o II Festival Gulbenkian e a elaborar o primeiro plano de actividades da Secção de Música, futuro Serviço de Música da Fundação, Madalena “percebeu que o festival podia ser uma oportunidade para dinamizar a vida musical portuguesa”, diz Vieira Nery, destacando como o evento cresceu de ano para ano, passando por diversos locais do país e revelando-se democrático e até acessível. É, aliás, “numa espécie de galeria de honra da música dessa altura”, que nomeia alguns dos músicos que passaram pelo festival, de Stravinsky a Rubinstein, que vemos retratada a forma como Madalena promoveu a entrada de Portugal no circuito musical internacional, ao mesmo tempo que apostou nos músicos portugueses, inclusive com a criação das primeiras bolsas de estudo para músicos, a promoção da investigação da História da Música Portuguesa e o Prémio Calouste Gulbenkian de Composição Musical. “O primeiro concurso foi ganho por Maria de Lourdes Martins [compositora e pianista], com uma menção honrosa para Jorge Peixinho.”
Em 1962, já como directora do Serviço de Música, cargo que assumiu dois anos antes, Madalena viu finalmente aprovada a formação da Orquestra de Câmara Gulbenkian, actualmente Orquestra Gulbenkian. Seguiu-se a criação do Coro Gulbenkian, em 1964, e do Grupo Gulbenkian de Bailado, mais tarde Ballet Gulbenkian (1975). “Olga Violante foi a primeira mulher a chefiar um grande agrupamento artístico em Portugal. Isto em 64. Não era propriamente a norma da casa”, chama a atenção o comissário. “O prémio atribuído a Maria de Lourdes Martins foi em 65. [Madalena] estava, discretamente, a puxar as mulheres para cima”, acrescenta a comissária-adjunta Inês Thomas Almeida, que faz questão de reforçar “a questão da paridade”.
“Não é uma coisa que anuncia [a vontade de fazer a afirmação das mulheres no campo das artes e noutras áreas da sociedade], mas que faz. Reparem que, aos 23 anos, em 1946, 12 anos antes de entrar para a Fundação, foi sócia auto-proposta da comissão do Conselho Nacional das Mulheres Portugueses, uma organização feminista [presidida por Maria Lamas], de valorização do trabalho feminino, de discussão dos problemas das mulheres, que foi interditada por António de Oliveira Salazar no ano seguinte.”
Fecha-se um ciclo, abre-se outro
No início dos anos 70, o conselho de administração da Fundação extingue o Festival Gulbenkian, porque o custo tinha subido exponencialmente, e “começa a haver sinais de alguma contestação à Madalena”, revela Vieira Nery, chamando a atenção para um recorte de jornal, onde se lê: “O fascismo na música. Pesadas responsabilidades da Fundação Gulbenkian”. Depois do 25 de Abril de 1974 e de ter sido alvo de graves acusações, inclusive de fascismo, Madalena de Azeredo Perdigão apresentou a sua demissão à Fundação Calouste Gulbenkian, casa a onde voltaria dez anos mais tarde, em 1984, para criar o ACARTE.
“A ideia [de haver fascismo na Fundação] é completamente absurda”, quem o diz são os comissários da exposição. Rui Vieira Nery relembra os artistas escolhidos por Madalena quando, em 1971, foi nomeada presidente da Comissão Orientadora da Reforma do Ensino Artístico. Inês Thomas Almeida mostra-nos uma carta que prova como Madalena lutou para incluir no Festival Gulbenkian uma música de Fernando Lopes-Graça, conhecido militante do Partido Comunista Português. “Sempre teve verticalidade”, afirma Thomas Almeida. “Desde 31 de Outubro de 1960 [quando casou com José de Azeredo Perdigão, 1.º presidente da Fundação Calouste Gulbenkian] até que morreu, em 1989, [fez todo o trabalho na Fundação] sem vencimento. Foi serviço público.”
Reformista pela educação e pela arte, Madalena de Azeredo Perdigão aproveitou o seu regresso à Fundação a propósito do estabelecimento do Centro de Arte Moderna para anunciar um programa interdisciplinar, aberto à inovação e à experimentação. No seu manifesto, escreveu: “Vamos correr riscos, vamos cometer erros. Vamos permitir que outros corram riscos e cometam erros.” Rui Nery interpreta: “Ela vem com uma nova atitude e isso só é possível graças ao trabalho que já tinha feito, quer enquanto chefe da Secção de Música da Fundação quer durante os anos de interregno [em que esteve a dirigir o Gabinete de Coordenação do Ensino Artístico do Ministério da Educação].” O resultado imediato foi, desde logo, o arranque da “Nova Dança” portuguesa, que traz a Portugal nomes como Pina Bausch e Elsa Wolliaston, e lança a carreira de coreógrafos nacionais como Olga Roriz e Vera Mantero. Mas muitos outros frutos se seguiram.
O seu legado – que a tornou uma referência incontornável para, por um lado, a compreensão da vida artística portuguesa na segunda metade do século XX e, por outro, a reflexão contemporânea sobre o lugar das artes – não só teve um impacto directo na história da Fundação Gulbenkian como deixou uma marca indelével no tecido artístico português. “O fazer, para garantir oferta artística ao público, e o ensinar, para garantir a formação de quadros qualificados nas artes, eram duas faces da mesma moeda para Madalena, e foi sempre essa a lógica do seu trabalho”, remata Vieira Nery. “Em 30 anos de actividade, ninguém teve uma acção tão transformadora na vida artística portuguesa na área das artes performativas e na formação artística. Dir-se-á ‘porque teve meios para isso’. Teve certamente, mas podia ter tido esses meios e ter feito coisas sem consequência. Portanto, realmente, há um antes e um depois da Madalena Perdigão nas artes em Portugal e é isso que estamos a tentar deixar claro com esta exposição.”
O trabalho continua
Além da exposição no átrio da Biblioteca de Arte e Arquivos, o programa inclui o colóquio “Madalena de Azeredo Perdigão (1923-1989): vamos correr riscos”, que está marcado para 6 de Junho, das 09.30 às 18.45. A ideia é evocar a sua vida e acção, bem como os desafios actuais e futuros do seu legado. A proposta, a decorrer no Auditório 3, termina com uma mesa-redonda subordinada ao tema “Experimentação, Criação, Colaboração: Abrir-se ao que faz falta”. Ainda antes, durante a mesma sessão, será lançado o livro Vamos correr riscos: textos escolhidos de Madalena de Azeredo Perdigão, uma antologia co-editada pela Fundação Calouste Gulbenkian e a Tinta-da-China, que revela a sua visão estratégica para a descentralização dos festivais Gulbenkian, a acessibilidade da cultura e a inclusão.
Já depois do Verão, no mês de Outubro, inaugura-se a exposição “Dança Não Dança. Arqueologias da Nova Dança em Portugal”, com uma cronologia dos momentos mais marcantes da história da dança em Portugal, inclusive do Grupo Experimental de Bailado e do Ballet Gulbenkian, criados por Madalena de Azeredo Perdigão. Patente na galeria do piso inferior, é de entrada livre, de 21 de Outubro deste ano até 5 de Fevereiro do próximo. Em paralelo, estão previstas várias visitas, conversas, sessões de cinema e performances. A programação completa ainda está por anunciar, mas irá também incluir um programa de comemoração dos 40 anos do ACARTE – Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte.
Exposição: Átrio da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. 28 Abr-20 Jul, Seg e Qua-Dom 10.00-18.00. Entrada livre
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