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‘Maráia Quéri’ ou o que é isso dos prazeres que nos fazem corar

A nova criação de Romeu Costa e Marta Carreiras convida-nos a fazer as pazes com as nossas “vergonhas”.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
Romeu Costa
Fotografia: Filipe FerreiraRomeu Costa em Maráia Quéri
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Há coisas que ouvimos e cantamos em privado – porventura até de forma exuberante, em frente ao espelho, de escova na mão – que muito dificilmente temos coragem de consumir em público, quanto mais de dizer que gostamos. São os chamados guilty pleasures, prazeres que nos fazem corar de embaraço. Porquê, não sabemos bem, mas sentimos a censura social (“mas ouves isso?”, naquele tom de soberba incendiária) e não hesitamos em policiar-nos. Mesmo na adolescência, esse lugar de descoberta do nosso lugar no mundo e de quem nos compreenda, mesmo que à distância de um pedestal. Com texto de Raquel S. e interpretação de Romeu Costa, que assina a criação com Marta Carreiras, Maráia Quéri procura debruçar-se exactamente sobre esses prazeres vividos em segredo através da história ficcionada – e, espante-se, um pouco autobiográfica – de um investigador que, perante a vergonha de gostar de Mariah Carey, se confronta com o receio da desonra ou do ridículo. A estreia está marcada para esta quarta-feira, 16 de Fevereiro, no Teatro Nacional D. Maria II.

Em palco, Romeu apresenta-se no plural académico. Diz “Nós somos o Romeu e estudámos”. O espectáculo ao qual assistimos é, na verdade, uma palestra-performance, que pisca o olho às famosas Ted Talks, mas também põe em causa a melhor forma de comunicar. Partindo do universo musical de Mariah Carey, ao som de quem as pessoas aparentemente compram mais meias, sobretudo durante a quadra natalícia, o investigador presta-se a desconstruir o conceito do que, em inglês, se chama de guilty pleasure. Por que motivo é ok gostar de certos artistas e de outros não? Quem decide o que é bom e o que é mau? Quais são as repercussões dessas ideias de pertença e exclusão? Com recurso a um conjunto de músicas, que distam dos anos 90 até à actualidade, fala-se, por um lado, da questão do gosto, da baixa e da alta cultura; e traça-se, por outro, o retrato de Portugal e da relação do nosso país com o resto do mundo através de uma perspectiva muito pessoal: a de um aveirense, que cresceu nos anos 90, homossexual, a gostar de Mariah Carey, e só agora, aos 42 anos, encontra coragem para o confessar.

Romeu Costa em Maráia Quéri
Fotografia: Filipe FerreiraMaráia Quéri, no Teatro Nacional D. Maria II

“Mariah Carey no Teatro Nacional. Que combinação tão inusitada. Mas por que motivo não podemos versar sobre uma figura da cultura pop e, com ela, reflectir sobre a vida?”, pergunta Romeu Costa, em tom de desafio, no final de um ensaio. “É uma provocação nossa, claro, mas é também uma forma de aproximar o teatro das pessoas, de mostrar que não é só Tchekhov, não é só escritores que já morreram. Há alguma agilidade a ganhar na forma como comunicamos. Tudo tem interesse, depende de como se faz, de como se fala sobre isso”, diz-nos o actor e director artístico, ansioso por abrir caminho para uma reflexão profunda sobre normatividade – e, quiçá, a urgência de a desmontar. Afinal, aprendemos depressa, não é possível pensar a culpa sem pensar acerca da herança judaico-cristã e da instrumentalização desse pejo. De como a Igreja tentou, por exemplo, dominar formas de organização sonoras como se procurasse dominar a consciência colectiva. O problema é que, mesmo quando partilhada, a música desperta diferentes sentimentos, emoções, estados de espírito, sentidos, em cada um de nós. “Aquilo que começa por ser uma comunicação científica falha precisamente porque tenta intelectualizar uma coisa que é altamente emocional.”

De repente, o plural dá lugar ao singular. Romeu já não está só a analisar o impacto de Mariah Carey no panorama musical nem o seu impressionante estatuto de soprano coloratura. Está a humanizá-la, a cantar e a tocar, a falar de amor e obsessão e da influência da cantora norte-americana na construção da sua própria identidade. De como há canções – é o caso de “All I've Ever Wanted” – que nos remetem para momentos absolutamente estruturantes – como um determinado treino de remo, em 1992, na ria de Aveiro, de que Romeu se lembra com particular nostalgia. “Esta reflexão também é sobre um adulto a fazer as pazes com a sua adolescência”, confessa, esperançoso de que o público também tenha oportunidade de se apaziguar. “A nossa maior ambição é, aliás, fazer de um espectáculo sobre coisas que nos envergonham uma forma de empoderamento.” De, no fundo, dizer que é ok não corresponder às expectativas, sair do cânone, no limite de não querer saber dele de tal maneira que, inesperadamente, dizemos “que se lixe o guilty pleasure, eu gosto disto, não tenho culpa nenhuma, não me sinto culpado, estou bem”.

Romeu Costa em Maráia Quéri
Fotografia: Filipe FerreiraMaráia Quéri, no Teatro Nacional D. Maria II

Em cena até 6 de Março, na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, Maráia Quéri terá uma última apresentação com audiodescrição. Antes, há uma sessão com interpretação em Língua Gestual Portuguesa, seguida de conversa com os artistas após o espectáculo, a 27 de Fevereiro. “O meu medo de fazer isto é ser tão pessoal que depois as pessoas não se relacionam, não encontram nenhuma oportunidade de se conectarem com o que estamos a preparar. Esse é o meu receio maior, que não haja essa empatia. De resto, quero que as pessoas se sintam inspiradas para serem diferentes do que foram até agora. Que o espectáculo as coloque num sítio de ‘nunca tinha pensado nisto’”, remata Romeu Costa. “Se chegássemos ao fim com a ideia de libertação, era incrível”, acrescenta a directora plástica Marta Carreiras. Os ombros a subir e a descer, num suspiro.

Teatro Nacional D. Maria II, Praça Dom Pedro IV. 16 Fev-6 Mar, Qua-Sáb 19.30 e Dom 16.30. 8,25€

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