[title]
No princípio era a vida. Depois, a morte chega e vai ocupando. O corpo continua a andar daqui para ali, cada vez mais inconsciente, mais entorpecido, até se esvair por fim nas memórias que foi acumulando. A morte é um deslizamento, não acontece de uma só vez. Resistir é inútil, mas é tudo o que resta. É uma prova de força para cumprir até à exaustão. “Olha para nós. Ainda não estamos exaustas”, ouve-se do palco, onde oito actrizes não-profissionais dão corpo e voz e solidez a Pêndulo, peça em que Marco Martins desenovela as suas histórias de imigração e invisibilidade umas das outras e as conta individualmente, com os seus tempos e as suas diferenças. São mulheres com idades entre os 31 e os 76 anos, que trabalham ou trabalharam como cuidadoras em Portugal, para onde vieram de São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique e Brasil com sonhos que tardam ou se perderam. “Talvez seja este o principal problema do Homem: ter sido criança”, volta a ecoar do palco. Os sonhos ficam a pesar e a inocência vai degenerando em melancolia.
Este é o sétimo projecto de teatro do realizador com actores não-profissionais e dá resposta a quem lhe disse que não precisava de ir a Inglaterra para falar de imigração, como fez no recente Great Yarmouth: Provisional Figures. Pois não. “É um problema global”, frisa Marco Martins, numa conversa após o ensaio geral que precedeu a estreia, que aconteceu no Auditório Municipal Augusto Cabrita, no Barreiro, a 10 de Junho. Quando o filme chegou às salas de cinema, em Março, já este Pêndulo estava em andamento. “Isto é sempre um processo relativamente longo. Começou há seis meses com a procura do elenco – aquelas imagens que se vêem em vídeo no início. E depois o trabalho de preparação com este elenco há três meses. [Elas] eram mais. Eram 18. Dessas, ficaram estas oito”, conta. Maria Yaya Rodrigues Correia, Maria Gustavo, Nzaji Dende, Juliana Teodoro Alves, Emanuelle Bezerra, Fabi Lima, Elane Galacho e Nádia Fabrici são os seus nomes, e é com elas que Marco Martins aborda o tema da falta de oportunidades dadas a quem é imigrante.
“Para estas mulheres, independentemente de qual é a sua formação, os empregos que estão disponíveis são sempre os mesmos”, afirma o criador. Na peça, estas mulheres têm todas o mesmo local de trabalho, o supermercado Europa, mas uma a uma são chamadas para entrevistas de emprego para uma vaga de cuidadora. Não importa se têm instrução primária, estão a tirar um mestrado ou têm experiência profissional. É um lugar invisível e é esse que está à disposição destas mulheres imigrantes, qualquer que seja o seu percurso. É nesse momento da entrevista que as personagens contam as suas histórias. Ao contrário do que vinha fazendo em situações deste género, aqui Marco Martins quis partir da ficção para atingir o real, invertendo a sua forma de construir o espectáculo. “Ensaiei algo que nunca tinha feito com grupos não-profissionais, que era partir de um pressuposto ficcional, ou seja, que elas trabalhavam todas no mesmo espaço, e desse espaço extrapolar para vários universos, para o universo do sonho, para o universo doméstico, para experiências anteriores. É um organismo de onde saem todas as outras narrativas, digamos assim.”
Marco Martins quis trabalhar duas questões associadas a estas mulheres. Por um lado, o que dá título à peça, a ideia de movimento pendular, tanto entre países como entre a periferia de Lisboa e o centro da grande cidade. O que significa que deixam as suas famílias e casas para trás, para irem cuidar dos outros. Fazem-no por necessidade delas, é certo, mas é bom que os outros reconheçam que é igualmente por necessidade deles. “Estas mulheres são cada vez mais fundamentais, porque a nossa população é cada vez mais envelhecida e portanto esta imigração é mais do que necessária, apesar de a tratarmos tão mal”, sublinha. Por outro lado, ou por consequência, queria explorar a invisibilidade a que estão votadas.
“Através do espaço do teatro, conseguires trabalhar com essas pessoas e falar sobre esse problemas de uma forma que não é moldada ou facetada por intermediários é um privilégio enorme”, observa Marco Martins, que além do tema tentou ser “provocador” na forma de o encenar. “Interessa-me muito isso no teatro, que é fazer explodir as formas. Porque já não é só uma ficção, já não é só um documentário. E acho que é um espectáculo que tem uma linguagem muito de cinema, no sentido em que tem muitos flashbacks, anda para trás, anda para a frente. Tem uma linguagem mais livre, um espaço de liberdade e de risco. Havia esta ideia de ser provocador também nesse sentido, na forma. Não só no tema. Porque não me interessava criar um espaço só de discurso social nem só de discurso íntimo, mas haver mesmo uma construção que era feita no processo e que tocava isso tudo.”
Esse processo envolveu a escritora Djaimilia Pereira de Almeida, o colectivo Tia Maria Produções, e a artista visual performativa Vânia Rovisco. “Tento reunir sempre o máximo de pessoas à volta de um projecto. Depois de escolhermos o grupo de 18 mulheres, houve um período com vários workshops – de música com os Tia Maria, de escrita com Djaimilia, de movimento com a Vânia – em que esse grupo todo participa. E vai se criando uma espécie de vocabulário e vários tipos de materiais que depois eu, quando entro em estúdio, começo a explorar. A Djaimilia, muitos dos textos que elas aqui dizem, também foram explorados com ela. Ou seja, é uma mistura entre biográfica e ficcional”, refere o encenador.
No que toca ao movimento, Marco Martins quis trabalhar no ruído constante em que estas mulheres vivem. “A maior parte destas senhoras trabalha em horários normais, mas depois tem de fazer muitas horas para casa e vivem em quartos partilhados. Há aqui uma ideia de que nunca há um espaço de silêncio”, diz. Mas não só. Há ainda os ubíquos telemóveis. “A Djaimilia tem um livro de que gosto muito, As Telefones, em que diz que os telemóveis são a grande forma literária da diáspora e da emigração. Qualquer coisa assim. O telemóvel tornou-se essencial na vida delas. Na nossa também. Estamos sempre todos ao telemóvel. Só que ali tem um valor, que é: há uma família que está longe. Porque esta emigração tem contornos muitos distintos, hoje, do que tinha nos anos 1970/80. As pessoas emigram sem família. As condições são tão precárias que a maior parte está sozinha, isolada. Então o telemóvel torna-se esse vínculo.” E isso reflecte-se, inevitavelmente, em cena.
Pêndulo é um projecto da Artemrede e, depois do Barreiro, vai passar por diferentes cidades que a integram. Primeiro, é apresentado no São Luiz, em Lisboa, entre 16 e 18 de Junho. Mais tarde irá ao Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal (24 de Junho); ao Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada (22 de Dezembro); e ao Cine-Teatro Joaquim de Almeida, no Montijo (10 de Fevereiro de 2024). Pelo caminho vai internacionalizar-se, graças à rede Prospero. “Neste momento temos duas datas fora, mas acho que depois vamos ter mais”, afirma Marco Martins. Tudo isto é ainda muito novo para as oito actrizes, mas o que está em curso é “uma experiência única”. “Há um aumento muito grande da auto-estima [das actrizes], no sentido em que de repente a vida se transforma”, nota Marco Martins. Contudo, a pergunta que fica mais lá para frente é: e o futuro? O futuro logo se vê. A maior parte tirou licenças sem vencimento para participar na peça, mas há pelo menos um caso em que o destino parece traçado – o de Emanuelle, do Rio de Janeiro. “Estudou comunicação, mas não encontra emprego em Portugal. Sabemos que, quando acabar este espectáculo, vai-se embora. Acabou por ficar para fazer o espectáculo”, revela. “Há uma ansiedade muito grande, há uma emoção muito grande, há muitas vezes choro e riso e riso e choro”, continua. “Todos os dias há esse momento. Depois, quando vais, vais.”
São Luiz – Teatro Municipal (Lisboa). 16 e 17 Jun (Sex e Sáb) 20.00; 18 Jun (Dom) 17.30. 12-15€ | Fórum Municipal Luísa Todi (Setúbal). 24 Jun (Sáb) 21.30. 5€
+ Porta dos Fundos volta a Portugal e Inês Aires Pereira junta-se à tour