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Miguel Laffan não tem rodeios nem falsas modéstias, nem aprecia propriamente quem os tem. O chef está de volta à alta cozinha quando já não o pensava fazer, pelo menos por agora, e não espera menos do que uma estrela Michelin no seu novo Intemporal, aberto desde há uns dias em Paço de Arcos. “Já ganhei [a estrela], já perdi, já voltei a ganhar. Estou focado, mas tal como não me moldou no passado, não me vai moldar no futuro. É um desafio. Mas não deixa de ser um foco diário”, diz sem rodeios e visivelmente entusiasmado com este regresso à Linha.
O restaurante é pequeno, mas nem por isso menos vistoso. Fica na antiga casa do fiscal, junto à Marginal, praticamente em cima do mar, onde fica o repuxo de Paço de Arcos. Depois de anos ao abandono, o edifício ganhou vida, cor e luz. Se antes nem se dava por ele, hoje é impossível desviar o olhar da fachada coberta de azulejos amarelo torrado, quase laranja. É a primeira aventura na restauração do grupo Wellow, com um vasto portefólio nas áreas de recursos humanos, outsourcing, energia, telecomunicações e mediação imobiliária e de seguros.
“Nós costumamos dizer que cada vez que o César [Santos, CEO do grupo] vai de férias aparece com uma empresa nova”, conta com alguma graça Ana Lopes, marketeer que tem acompanhado todo o processo. “O grupo acaba por ter várias áreas e entretanto surgiu esta oportunidade”, continua, explicando que em cima da mesa estiveram possibilidades como “uma pizzaria, uma espécie de bar de apoio à praia ou um bistrô”. Foi só quando a arquitecta Paula Arez se envolveu no projecto que o restaurante acabou por ganhar a forma que tem hoje, já com a visão também de Miguel Laffan. “É o meu bebé, vi cada tijolo a ser montado, estive aqui todos os dias”, recorda o chef. “Fui eu que propus isto”, exclama. E elabora: “Isto começa tudo com a arquitecta, que é arquitecta do grupo há muitos anos. O César adquiriu este espaço e de repente vira-se para a Paula e diz: ‘Temos de fazer um restaurante’. E a Paula perguntou se já tinha o chef. E ele: ‘Mas precisamos de um chef?’. E a Paula, que é minha amiga, contactou-me”.
Quando ainda num iPad viu o espaço, Miguel Laffan estava longe de imaginar que o fine dining seria novamente o caminho – não tinha ideias pretensiosas ou demasiado ambiciosas. “Sinceramente, estava numa fase da minha vida em que não estava nada virado para este tipo de segmento. Estava com uma vida confortável e as ideias eram outras”, confessa. “Mas no dia em que vim aqui, cheguei à conclusão que tinha poucos lugares e que por isso tinha de ser um ticket médio/alto – fine dining, Michelin –, e começámos a pensar um bocadinho nesse sentido. Fiz-lhes a proposta e adoraram.”
A entrada para o restaurante faz-se praticamente pela cozinha. Há um balcão que serve como mesa do chef e onde se sentam quatro pessoas. No piso de cima fica a sala com 12 lugares e com uma vista para o mar hipnotizante. “Inicialmente, dava para perceber o potencial da vista, mas como isto estava em ruína só passados seis meses de obra é que consegui subir e ver”, lembra o chef. O janelão que preenche a sala é de facto impressionante, pensado para ter a altura certa para que quem se senta mal consiga dar pelos carros a passar na Marginal – uma subtileza, como tantas outras (e sim, é uma coincidência que os candeeiros, escolhidos pela arquitecta, façam lembrar a sala do L'and Vineyards, onde Laffan conquistou em 2015 uma estrela Michelin, num percurso que se revelaria tudo menos simples).
“Eu quando reagi ao conceito que achei que fazia sentido, apaixonei-me completamente”, assume, afirmando-se livre e negando, à partida, qualquer conceito. “Não estou preso. Gostava que as pessoas se focassem, sim, no talento e na experiência.” Miguel Laffan fala seguro do trabalho feito e sem pedantismo. “Eu hoje em dia sei que sou uma pessoa criativa. A cozinha é como eu me expresso, tanto que estou rodeado de pessoas que são boas gestoras. Acho que é mais fácil [os clientes] ajudarem-nos a fazer esta viagem, percebendo e reconhecendo que mesmo que agora exista uma influência mais asiática e depois outra mais sul-americana, há sempre uma matriz, um cunho que se vai reconhecer”, acredita.
A servir almoços e jantares, tem um só menu de degustação (80€/130€ com harmonização) que mudará obrigatoriamente a cada três meses – e também daí o nome Intemporal, mas já lá vamos. “Mudar a carta vai ser um desafio, mas vai ter sempre um dia marcado. Se não formos rigorosos, acaba por se deixar mais uma semana e depois outra. Tem de ter um dia”, justifica. “Faz parte e vai ser importante para mim, para a minha equipa e para os clientes que de três e três meses vão dizer: ‘Vamos lá ver o que se passa ali’”, acrescenta.
Para começar, um menu com 12 momentos em que Miguel Laffan não teve medo de arriscar nos temperos, nas especiarias e na conjugação de influências, fugindo a etiquetas que o possam pôr numa caixa. “Um menu de degustação tem de ter rock'n'roll”, atira. E é por isso que nos snacks, por exemplo, contrastam uma tom yam com côco, lima kaffir e galanga com um guloso “pãozinho” a fazer lembrar um bao com pato e foie gras. Nas entradas, serve-se um lírio dos Açores com lima caviar e dashi e uma lula em tempura com shiso e caviar.
Nos principais, novo contraste de sabores, ainda assim sem que se conflituam. Ao salmonete com berbigão, açorda e coentros que acompanha Laffan há anos e que denuncia a proximidade do chef ao Alentejo, segue-se um caril de pimentas kashmiri. “Eu queria ter no menu um momento de conforto, um momento de casa e este prato representa isso. A minha mãe sempre fez muitos caris, sempre usou muitas especiarias. Encontro sempre algo reconfortante numa tagine, num caril ou algo do género. O menu vai ser trocado e a minha ideia é que este prato seja sempre servido assim. Aliás, o que vou tentar fazer é criar o que está aqui como matriz e depois vou trocando consoante a época”, argumenta, revelando que a loiça servida neste prato em específico foi também feita pela mãe. “Tem já 78 anos e adora fazer cerâmica.”
Segue-se, então, um prato de cogumelos silvestres, gema fumada, papada e trufa e uma presa de porco preto com batata frita e aioli. Nas sobremesas, a chef de pastelaria Letícia Silva, vinda da Herdade da Malhadinha e com quem Laffan trabalhou já no L’And, apresenta um primeiro momento fresco e cítrico com yuzu, baunilha e poejo, antes de servir um chocolate negro com malagueta e amendoim. Por fim, um momento de queijo.
“São 25 anos de experiência. É uma cozinha de autor Miguel Laffan. Obviamente e é claro que eu gosto de comida asiática, agora este menu foi um bocadinho puxado para aí, mas no próximo talvez não seja.” A certeza é a de que está focado neste regresso “à Liga dos Campeões”, sem medo e alheio a pressões. “Eu sou das poucas pessoas que pode responder assim”, reforça, recordando o episódio em que perdeu a estrela Michelin em 2016 para a voltar a conquistar em 2017 – o L’And acabaria por perder novamente a estrela em 2019, já depois da saída de Laffan. “Agora, temos que marcar golos, é um facto”, diz. “Essa é a nossa missão desde que começámos a apresentar o Intemporal, agora só eles é que sabem se me dão ou não [a estrela], mas eu não gosto de falsas modéstias. É esse o objectivo.” Também ele intemporal, lá está. Até porque o que é intemporal “não é de moda”, é para ficar.
Rua Vista Alegre, Paço de Arcos (Oeiras). 968 432 288. Ter-Sáb 12.30-15.00, 19.30-23.00
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