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A travessia de um deserto é, provavelmente, das analogias que melhor resume o último ano e meio para a maioria dos designers de moda portugueses. O consumo retraído, as limitações à circulação de pessoas e os constrangimentos na produção e no fornecimento de matérias-primas abalaram marcas e empresas, as mesmas que agora dependem dos seus criativos para responder prontamente ao mínimo indício de retoma.
Ricardo Andrez soma 15 anos enquanto marca e foi um dos criadores a antecipar o próximo Verão no último sábado, no Capitólio. À Time Out, mais do que um tema ou uma inspiração, falou sobre uma nova consciência do seu trabalho. "As duas últimas estações foram difíceis com tudo o que estava acontecer, mas esta fluiu de forma muito mais orgânica. É a colecção com menos looks que apresentei até hoje: 20. Por um lado, não quero voltar àquele ritmo de 2019. Por outro, não tenho de ter 30 ou 40 looks para passar um conceito. Quero ser mais assertivo", admite.
A assertividade manifestou-se na passerelle, a começar por aqueles que são os traços mais identitários do criador: as abotoaduras metálicas, a estrutura de ombros e mangas e as tonalidades flúor, aqui representadas pelo rosa. O conjunto transportou a audiência para a "virtualidade mais real" de videojogos, NFTs (os non-fungible tokens são objectos raros, que existem apenas no mundo digital e que podem atingir milhões) e modelagem 3D.
Andrez sublinhou o tema estampando imagens pixelizadas, espalhando QR codes pelas peças e subindo a fasquia tecnológica através de um material termicamente sensível. O que parecia um simples dégradé rosa e azul, é na verdade um tecido que muda de cor em função da temperatura corporal. A par da tecnologia têxtil, a sustentabilidade continua a ser uma das preocupações do designer — 90% da colecção apresentada este sábado é feita a partir de stocks parados de fábricas portuguesas.
O designer acaba de aterrar de Paris, onde mostrou, em primeira mão, a nova colecção, numa acção conjunta da ModaLisboa e do Portugal Fashion que promoveu ainda o trabalho de duas outras criadoras — Constança Entrudo e Maria Carlos Baptista — num evento com público. "Foi bom voltar a ter pessoas. E Paris é sempre Paris. Eu já tinha feito um trabalho comercial antes da pandemia começar, por isso é estratégico poder fazer uma apresentação depois de ter estado em showroom".
Constança Entrudo: performance, TikTok e poesia visual
A recente obsessão de Constança Entrudo pela geração z trouxe-a até aqui. E por "aqui" entenda-se um Verão de 2022 hiper colorido, debaixo dos desígnios da cultura pop. "O meu trabalho passa muito por trazer um bocadinho de humor para a moda e sim, a pop culture tem uma influência enorme naquilo que faço", refere a criadora, millennial por nascimento. "Apesar do meu trabalho ser intemporal, sou super influenciada pelas tendências. Esta ideia das missangas, das cores e dos brilhos vem daí. Comecei a passar horas no TikTok, a querer saber tudo sobre a geração z e a querer ser como eles".
Entre peças tecidas à mão e vestidos que se moldam ao corpo, a criadora voltou a estabelecer uma ponte com as artes visuais. Em vez de um desfile, uma instalação da artista Isa Toledo serviu de palco à apresentação. Uma espécie de "dimensão paralela", onde oito modelos posaram para imprensa e convidados num momento de puro voyeurismo. O texto, escrito a quatro mãos a partir de um velho dicionário, soou durante a performance. Apresentar uma colecção num set desenhado de raiz era um desejo antigo da designer. Muito antes dos materiais, foi a cor a ditar o rumo do próximo Verão.
Luís Carvalho, um Verão entre o campo e a cidade
Uma viagem ao campo, deixando para trás a paisagem urbana, foi a metáfora proposta por Luís Carvalho para o desconfinamento progressivo dos últimos meses. A fechar este terceiro dia de ModaLisboa, o designer, que há uma semana recebia o Globo de Ouro de Personalidade do Ano na categoria de Moda, deambulou entre opostos — a descontracção e o romantismo campestres de um lado, a sobriedade e a sofisticação urbanas do outro.
"Esta colecção é sobre o voltar a sair de casa e a poder respirar livremente", admite. Dos anos 50, Luís trouxe as silhuetas de cintura marcada. Os linhos, algodões e jacquards foram garantias de conforto, ao passo que os crepes de seda recordaram que, afinal, estamos perante um favorito das passadeiras vermelhas nacionais. Quanto à paleta, começou por ser aquecida pelo sol (dourado e amarelo torrado) para depois arrefecer gradualmente, à medida que se sucederam os xadrezes em tons de cinza, o branco, o lavanda e o roxo.
Soalheira é também a lente com que Luís Carvalho perspectiva o futuro. "A pandemia fez-me repensar a forma como trabalho. Acho que estou no bom caminho, até porque a procura pela marca tem estado a aumentar. Se continuar assim, acredito que vai correr tudo bem".
Muitas horas antes, o dia arrancou com a apresentações de dois jovens criadores: Fora de Jogo e Filipe Augusto reservaram a passerelle ao menswear. Depois dos criadores da Workstation, coube a Duarte inaugurar o calendário deste sábado. Para o próximo Verão, a designer subiu alguns degraus na escala do sportswear ao apresentar uma colecção orientada para a vida outdoor, com bombers, calções e corta-ventos.
A inspiração? Tadao, o cão de Ana Duarte que foi promovido a herói de banda desenhada. Uma história aos quadradinhos que acabou por ditar a paleta da colecção — Homem Smog, Homem Fogo, Homem Desflorestação e Homem Onda são os vilões por detrás das cores, mas também um aceno às questões da sustentabilidade e do combate da crise climática. O amigo de quatro patas não foi o único convidado especial do desfile, que ocupou parte da zona exterior do Capitólio — também Miguel Cristovinho dos D.A.M.A. desfilou, embora sem arrancar tantos suspiros da audiência.
Ricardo Preto tirou partido do mesmo espaço a céu aberto. O que começou por ser o claustro de um convento, musicado pelos sinos da torre e habitada por visuais de inspiração clerical, depressa se transformou numa romaria de aldeia, pontilhada de rosa, lilás, vermelho, fúcsia, azul céu e laranja. O vestido foi o elemento central — símbolo da feminilidade serena do criador, mas também peça em movimento, graças à brisa e à escolha de materiais como a popeline, a seda e o cetim.
Quem também desfilou neste terceiro do calendário foi Carlos Gil. Riscas, corais e uma representação da "árvore da vida" compuseram o estampado de assinatura do criador para o próximo Verão.
A 57ª edição da ModaLisboa termina este domingo. São esperados os desfiles de Valentim Quaresma, Buzina, Nuno Gama, Gonçalo Peixoto, João Magalhães e Nuno Baltazar.
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