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Músico, cantor, compositor, produtor, resistente. José Mário Branco deixa um legado que vai muito além da sua discografia. Está em Zeca Afonso, em Sérgio Godinho, em Carlos do Carmo, em Camané. Morreu aos 77 anos.
O primeiro amor de José Mário Branco foi a música de intervenção. Nem poderia ser de outra forma: com a insatisfação, a resistência e a liberdade à flor da pele, era a única saída possível para um músico no Portugal dos anos 1960, mergulhado no fascismo e na guerra. Depois veio o resto. O teatro, o fado. Por todo o lado foi abrindo portas, aprimorando, enriquecendo. Encenando. José Mário Branco é muito mais do que os discos que assina à cabeça, muito mais do que o lutador inquieto e radical pela igualdade. José Mário Branco, que morreu esta noite aos 77 anos, vítima de um AVC, foi o catalisador da transformação que a música popular viveu no último meio século.
Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (1971), o disco de estreia que editou a partir de Paris, onde se exilou até ao 25 de Abril, é um marco. A chanson, o rock, a balada, a música tradicional e a erudita – está lá tudo. Os recursos musicais de José Mário Branco eram vastos e o músico punha-os a uso. Subalternizar a música, admitir composições pobres em favor da mensagem política, nunca foi uma opção. Por outro lado, a palavra era tratada com a ciência de quem era, também, um poeta. Neste primeiro disco, canta as suas próprias letras, as de Sérgio Godinho, poemas de O’Neill, de Natália Correia (a belíssima “Queixa das Almas Jovens Censuradas”), de Camões (o autor do título do disco).
Sérgio Godinho estreou-se no mesmo ano com Os Sobreviventes. Produção e arranjos: José Mário Branco. O tema que descende directamente desta colaboração, “O Charlatão”, está nos dois discos. Mas esta fase inicial da história não termina sem entrar em cena a figura maior da música de resistência: José Afonso. Cantigas do Maio foi gravado meses depois, em Hérouville. Os passos arrastados que pontuam “Grândola, Vila Morena”, como se ali estivesse um grupo de cante alentejano, são ideia – e os pés – dele, que volta a assinar como produtor e arranjador. Há um ano, em entrevista à Time Out, José Mário Branco apontava essa experiência como o momento fundador do que viria fazer daí em diante: “Foi aí que comecei a ter aquela noção de que falo sempre, de encenação sonora, de sonoplastia específica para as canções. Não são arranjos, não são orquestrações. São encenações mesmo”. Venham Mais Cinco (1973) volta a ter o seu cunho.
O segundo disco, Margem de Certa Maneira (1972), ainda foi gravado no exílio. O álbum abre, aliás, com “Por Terras de França” e prossegue com temas de antologia como “Engrenagem” e “Eh Companheiro”. Pelo meio, José Mário Branco musicou um poema de um pastor alentejano, António Joaquim Lança, que volta a reverberar neste dia de perda: “A Morte Nunca Existiu”. Diz assim: “A morte não sai prà rua/ Nem anda de terra em terra/ E quando um dia a vida degenera/ A morte, cada um tem a sua/ Essa já não continua/ Onde nasceu foi acabada”. A morte do “Zé Mário” morreu com ele. E a vida cá está, em tudo isto.
Nascido no Porto em 1942, José Mário Branco era um “pequeno burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro”. Faltavam-lhe dentes. Era assim que se descrevia no poderoso e teatral “FMI”, “um texto escrito de um só jorro numa noite de Fevereiro de 79”. Um monólogo musicado que se tornou num símbolo da frustração, do desespero e da fúria de quem batalha por uma vida melhor. José Mário Branco começou por se mostrar activo entre a esquerda católica e acabou por se inscrever no Partido Comunista, o que lhe poria a PIDE à perna e o levaria a dar “o salto” para França em 1963. O curso de História nas universidades de Coimbra (primeiro) e do Porto (depois) ficou a meio. Muito mais tarde, participou na fundação do Bloco de Esquerda (e voltou à universidade, aos 64 anos, para o curso de Linguística). Nunca deixou de participar nem de fomentar a luta política. Na entrevista à Time Out, falava sobre a reincidência nas canções de intervenção de sempre. Recusava repetir-se: “Mas que raio de nostalgia é esta? Estamos derrotados ou que merda é esta? Não temos nada que fazer? O mundo está porreiro? Está tudo bem nas vossas vidas? Na minha não!”.
Quando regressou a Portugal, diluiu-se no Grupo de Acção Cultural – Vozes na Luta, o GAC, que fundou em Almada com Fausto, Afonso Dias e Tino Flores. O colectivo percorreu o país, participou no Festival da Canção de 1975 com “Alerta!” e José Mário Branco à cabeça, e gravou quatro discos até 1978, ano em que se desintegrou. A luta do GAC era externa e interna, com várias adições e dissidências em busca do socialismo certo ao qual dar megafone. José Mário Branco já não participa nos dois últimos álbuns, mas A Cantiga é uma Arma (1975) e Pois Canté!! (1976) têm a sua marca indelével. Nessa altura está a trabalhar no terceiro LP, A Mãe (1978), do qual faz parte o tema “As Canseiras desta Vida”.
O final da década de 1970 é uma altura de viragem para o músico, que começa a trabalhar num género que chegou a desprezar – o fado. A mudança tem o dedo da companheira, a actriz e poeta Manuela de Freitas, que o ajuda a terminar a primeira tentativa, “Fado da Tristeza”, à qual se segue “Fado Penélope”, ambos incluídos no álbum de 1982, Ser Solidário. O “Fado Penélope” foi ainda cantado por Carlos do Carmo e por Camané. Este último tem uma relação umbilical com José Mário Branco, que foi produtor, director musical e arranjador de todos os seus discos. O que também tem sido habitual nos trabalhos de Kátia Guerreiro (“É uma das pessoas mais bonitas que eu conheci na minha vida. Isto dito assim, numa entrevista, pode parecer um bocado esquisito, não é? Uma amiga do Cavaco…”, disse-nos). “Vim para o fado e fiquei” foi um dos temas de Carlos do Carmo que José Mário Branco escolheu, há cerca de duas semanas e a pedido da Time Out, a propósito da despedida do fadista aos palcos (pediu “por favor” para não usarmos a versão com orquestra; os outros fados foram “Não és tu” e “Aprendamos o rito”).
Além do fado, Manuela de Freitas seduziu-o para o teatro. Colaborou com A Comuna (A Mãe era a banda sonora para a peça de Brecht, levada à cena em 1977), com Grupo de Teatro da Liga, o Groupe Organon, o Teatro do Mundo. Entre o final dos anos 1970 e toda a década de 1980, multiplicou-se em participações e colaborações em palco. E voltou a trabalhar com Zeca Afonso (está nos últimos quatro discos de estúdio), criou o espectáculo A Noite (1985). O epistolar Correspondências é de 1990. E só 14 anos mais tarde voltaríamos a ter um trabalho de inéditos de José Mário Branco – Resistir É Vencer (2004), pensado como uma homenagem ao povo timorense. As inevitáveis colectâneas, ao vivo e de estúdio, amenizaram o hiato. Um papel que, após 2004 e sem qualquer outro álbum de originais desde então, coube ao espectáculo "Três Cantos", que em 2009 o juntou no Campo Pequeno a dois nomes maiores da sua geração de cantautores – Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias. No ano passado, por altura dos 50 anos de carreira, foi editada uma versão revista da antologia Canções Escolhidas e Inéditos (1967-1999), que reúne a obra dispersa.
“José Mário Branco escreveu e marcou a história contemporânea portuguesa, com voz activa e braço erguido por um Portugal melhor, mais alerta, mais capaz, mais solidário. A resistência, em Portugal, terá sempre um disco de José Mário Branco como banda sonora”, escreveu a ministra da Cultura, Graça Fonseca, na nota de pesar à morte do artista. “Com uma carreira longa e um repertório que nunca deixou de dialogar com a tradição musical portuguesa, das cantigas de amigo ao contemporâneo, e com as demais artes, o seu legado alcança um patamar intemporal. A nossa responsabilidade, agora, é honrá-lo continuando a dar voz à sua inquietação.”