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“Tu és uma super-heroína egípcia?” A pergunta é feita em árabe e a rapariga que a profere, numa rua do Cairo transformada em campo de batalha, mal pode acreditar nos seus olhos. “Sim”, responde-lhe Layla El-Faouly, interpretada pela egípcio-palestiana May Calamawy em Moon Knight: Cavaleiro da Lua, a série da Marvel que chegou recentemente ao fim no Disney+. As reacções não se fizeram esperar: finalmente. Era mais um capítulo da prometida diversidade para a Fase 4 do Universo Cinematográfico da Marvel (UCM), que já entregou o escudo do Capitão América a uma pessoa negra (O Falcão e o Soldado do Inverno); já abriu espaço ao primeiro protagonista asiático deste longuíssimo fio narrativo (Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis); e já apresentou um elenco marcadamente multiétnico numa das suas grandes produções para cinema (Eternos). Mas Layla era o sidekick. Esta quarta-feira, estreia-se na mesma plataforma de streaming uma série inteiramente dedicada a uma super-heroína de origem muçulmana: Ms. Marvel. É a história da jovem americano-paquistanesa Kamala Khan.
Ms. Marvel não é uma personagem nova. Originalmente, era Carol Danvers, que hoje é ela própria o Capitão Marvel. Kamala Khan, pelo contrário, é recente: apareceu nos comics há menos de dez anos pelas mãos da americano-paquistanesa Sana Amanat, que queria criar uma personagem com que as miúdas muçulmanas da sua e de outras famílias se pudessem relacionar. Kamala é uma adolescente obcecada com super-heróis no geral e com a Capitão Marvel no particular. Produz fan art, publica vídeos no YouTube, desenha fatos para concursos de cosplay, participa em convenções e, sobretudo, sonha com tudo isso a toda a hora. E depois tem os problemas normais da idade: o questionamento das regras em casa, as dificuldades de relacionamento na escola, os rapazes…
A adaptação da personagem para televisão foi feita pela comediante e argumentista Bisha K. Ali, que entrou no UCM através de Loki, depois de contribuir para Sex Education com “material adicional”. Também de origem paquistanesa, K. Ali sabe bem a importância que Kamala pode vir a ter como modelo aspiracional, mas não quer que a personagem, nem a sua circunstância, seja confundida com uma síntese do que se vive nas comunidades muçulmanas.
“Não vamos representar milhares de milhões de muçulmanos. Não é fisicamente possível. Mas esperamos que [Ms. Marvel] abra a porta a mais e mais histórias com personagens de origem muçulmana”, diz a criadora, em resposta à Time Out, numa videoconferência de imprensa. “A nossa história deve estar representada nos media. Fazemos parte do mundo. E somos diferentes e diversos dentro da nossa própria comunidade.” Um dos aspectos mais repisados dos últimos anos nas histórias de muçulmanos a viver nos EUA – as ondas de choque pós-11 de Setembro – foi deixado de fora. Mas isso não significa que a série esteja em estado de negação ou alienação. Opta por abordar outros assuntos delicados, incluindo um particularmente doloroso e com impacto de décadas nestas pessoas: a Partição da Índia. Isto numa produção muito teenager, em que a acção é polvilhada com elementos de animação. Bisha sabe que está a lembrar a existência dessas feridas abertas a uma audiência global, graças à “ubiquidade da Marvel”. Está a falar para dentro da comunidade, mas também para fora.
Mais do que isso, a argumentista quis mostrar que Kamala é uma miúda como qualquer outra. “[Ser muçulmana] é uma parte do que ela é, e isso é reflectido sem julgamentos. Isso é que é importante para mim”, diz. Mas não é tudo, nem essa é uma característica monolítica (Kamala, o irmão e os pais mostram como “diferentes níveis de religiosidade” convivem debaixo do mesmo tecto). Para Bisha K. Ali, o que veremos é uma personagem “tridimensional, com matizes”, que combina o original dos comics com um pouco de si mesma. Quem a interpretará ao longo de seis episódios, sempre às quartas-feiras a partir de 8 de Junho, é a estreante Iman Vellani, cuja história se confunde com a de Kamala. Iman é canadiano-paquistanesa, tem 19 anos, e gastava em BD a mesada de 20 dólares que os pais lhe davam. Sabe tudo sobre os super-heróis da Marvel e, quando descobriu Kamala Khan nos comics, fez um fato de Ms. Marvel para levar para a escola, onde lhe perguntaram se era o Flash (mito? Há prova documental: uma fotografia).
“A Iman estava destinada a ser Kamala Khan. Quando a vimos no vídeo de casting [que nos enviou], percebemos logo”, conta na mesa redonda seguinte Adil El Arbi, junto a Bilall Fallah, com quem faz dupla de realização (Bad Boys Para Sempre, por exemplo). “Ela deu à personagem a sua própria identidade e levou-a para um patamar ainda mais alto. Para nós, foi uma bênção.” Adil e Bilall são marroquino-belgas, logo a indefinição que Kamala experiencia, sobre qual é o seu lugar no mundo, é-lhes cara também. “Ela está à procura da sua identidade, da mesma maneira que nós estávamos. Onde é que encaixamos? Somos muçulmanos, marroquinos, belgas? Para ela é o mesmo. Está à procura dela própria: é paquistanesa, muçulmana? É americana? Na verdade, não encaixa bem em nenhuma dessas realidades. E é uma grande fã dos Vingadores. Idolatra-os, sem pensar que um dia poderá vir a fazer parte. Quando de repente ganha os seus poderes, fica confusa, porque fica entre uma pessoa normal e um super-herói. Ela está entre culturas e depois fica também entre mundos. Isso é o que há de especial e de diferente face às outras personagens da Marvel”, sublinha. Adil e Bilall dirigem o primeiro e o último episódios. Os outros são-no por Sharmeen Obaid-Chinoy e Meera Menon, uma de origem paquistanesa, outra indiana. Kamala Khan regressará depois em 2023, mas no cinema, com The Marvels.
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