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Passar pelo detector de metais, validar o bilhete com um QR code e atravessar uma sensível porta giratória com reconhecimento corporal. O processo de segurança para entrar no novo Museu do Tesouro Real, que é inaugurado esta quarta-feira, 1 de Junho, é moroso. Mas adequado, já que o tempo tem ditado a história deste espaço. Há 226 anos que a construção do Palácio da Ajuda, em Lisboa, estava por acabar e há pelo menos seis que o Museu do Tesouro Real, na ala poente do edifício, estava a ser preparado.
A abertura chegou a estar anunciada para Novembro, mas só agora vai ser possível vislumbrar o acervo de ourivesaria e joias da antiga Casa Real, um espólio destruído, em parte, no terramoto de 1755, e que hoje ascende a um total de mais de 900 peças.
Numa caixa forte impenetrável – nem sequer acessível pela rede móvel ou pela internet – está o tesouro. Duas portas blindadas de cinco toneladas compõem a estrutura de alta segurança que não tem ligação a nenhuma outra zona do Palácio Nacional de Ajuda. “Por uma questão de segurança, de estrutura e sísmica”, garante João Carlos dos Santos, director-geral da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e arquitecto responsável pelo projecto, que imaginou este museu como "uma pequena caixa de joias, em que não é só a caixa, é sobretudo aquilo que se guarda lá dentro”. No caso, são quase mil objectos, de pepitas de ouro a tiaras históricas ou a salvas e pratas portuguesas quinhentistas.
A exposição, de carácter permanente, divide-se em 11 núcleos: ouro e diamantes do Brasil, moedas e medalhas da Coroa, joias do acervo do Palácio Nacional da Ajuda, ordens honoríficas, insígnias régias, prata de aparato da Coroa, colecções particulares, ofertas diplomáticas, capela real, Baixela Germain e viagens do Tesouro Real.
“Muitas peças vão com D. João VI para o Brasil, [também] deixa várias ao filho, D. Pedro IV, manda uma série de peças para o Banco de Inglaterra, que só a rainha D. Maria II manda buscar, portanto há uma série de saídas e entradas de peças que nós procurámos juntar e explicar”, resume José Alberto Ribeiro, director do Palácio Nacional da Ajuda, sobre a epopeia para reunir um espólio que agora se descobre nos três pisos da caixa-forte que só recebe 100 visitantes de cada vez. É na penumbra que se observam peças que a instituição classifica como de “valor inestimável”. Neste casulo sem janelas, só pontos de luz estrategicamente posicionados rompem com o negro para deixar brilhar as peças.
Uma das relíquias em destaque é a tiara de diamantes e safiras, da década de 1840, que pertenceu à rainha D. Maria II, a segunda mulher a sentar-se no trono português, entre 1834 e 1853. Faz agora um ano que o Estado falhou a compra da peça, que foi arrematada por 1 milhão e 322 mil euros em leilão. Na época, Portugal já almejava a tiara para compor o espólio do Museu do Tesouro Real, mas não conseguiu acompanhar as licitações, que terminaram num valor quatro vezes superior à estimativa máxima da leiloeira Christie’s para o objecto.
Depois de perdido no leilão, o diadema de cinco safiras birmanesas e 1400 diamantes chega agora a solo nacional por empréstimo – os portugueses (e turistas) têm um ano para observar de perto a coroa. Será um caso excepcional, já que os empréstimos não serão recorrentes neste novo equipamento cultural. O director do Palácio Nacional da Ajuda mostra-se absolutamente inflexível para emprestar, temporariamente, qualquer das peças do Museu do Tesouro Real. E receber? “Talvez”.
Para lá das peças
Se nos longos corredores escuros fica evidente a riqueza dos reis e rainhas de Portugal, também se nota a ausência de referências à discussão sobre, mais do que as peças, o processo da sua obtenção, na qual a escravatura se inclui. "Isso é falado no catálogo. Tínhamos que escolher", diz José Alberto Ribeiro à Time Out, acrescentando que "uma das exposições que gostava de fazer aqui é sobre as joias das escravas do Brasil, que eram peças absolutamente fascinantes, as peças de ouro que elas tinham e que mandavam fazer para si". "É claro que numa exposição desse género, em que temos tanto para contar do ponto de vista histórico e artístico não poderemos abordar isso", acrescenta o director do Palácio Nacional da Ajuda.
É apenas num dos filmes que passa num dos ecrãs no interior da caixa-forte que se vislumbra uma representação de um grupo de serviçais negros a servir protagonistas brancos. Uma menção discreta para a premência do debate na actual esfera pública? "Tenho um certo receio que as coisas percam centralidade, que é mostrar os objectos. Claro que todos sabemos que em 500 anos de colónias houve [escravatura], como em todos os países, como ainda hoje acontece. A maior parte das peças de ouro que são feitas ainda hoje é ouro vindo de África e dos mais variados sítios, mas achamos que com certeza que falaremos dessa situação, mas não no âmbito agora da inauguração", remata José Alberto Ribeiro.
O catálogo da exposição não chega a tempo da inauguração, por alterações nos custos de produção. Deverá chegar à loja, localizada no piso térreo da nova ala, em Julho.
Expectativa: 275 mil visitantes por ano
Esperam-se 275 mil visitantes ao ano para o novo museu, 60% dos quais estrangeiros. O Palácio Nacional da Ajuda soma actualmente 120 mil e trabalha-se na possibilidade de um bilhete conjunto para ambos os espaços, que deverá estar disponível em breve – por enquanto há um desconto de cerca de 20%.
O projecto que agora termina teve um custo final de cerca de 31 milhões de euros – 4,4 milhões provenientes da indemnização do roubo de seis peças da colecção em 2002, em Haia, 18 milhões da Câmara Municipal de Lisboa através da taxa turística, e 9 milhões da Associação de Turismo de Lisboa, que fica assim "durante um determinado período a gerir operacionalmente o museu". Vítor Costa, director geral do Turismo de Lisboa, diz à Time Out que esta gestão se concretiza em áreas como "pessoal, manutenção, venda de bilhetes, recolha de receitas e todos os custos inerentes". "Os lucros anuais são divididos entre a Associação de Turismo de Lisboa e a DGPC", esclarece também. Depois de todos os custos e encargos, "o que sobrar, se sobrar, é dividido ao meio. Se não sobrar é o Turismo de Lisboa que assume", garante, ciente de que "não há nenhum museu com um investimento deste tipo que, no prazo de 20 anos, pague o investimento todo".
Museu do Tesouro Real. Calçada da Ajuda (Ajuda). Seg-Dom. 10.00-19.00. 10€