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“Preferem uma doner box ou primeiro álbum de Black Midi? Só podem [ter] um para o resto da vida”, indaga Lourenço Dias, vulgo Yung Xalana, outrora de Panado, ainda de MEIA/FÉ. Lança o desafio no Instagram, num grupo onde estão também os Cortada (Bernardo Pereira, Daniel Fonseca, Lourenço Abecasis, Pedro Pimenta Almeida) e Rui Fonseca, baterista e vocalista dos 800 Gondomar. Estamos reunidos para falar do cartaz desta quinta-feira, 19 de Setembro, no Musicbox, que junta as três bandas. A entrevista começou pouco depois das 22.30, já com toda a gente despachada dos ensaios e de outros compromissos laborais, e não tardou a descambar.
Esta data só foi confirmada há umas semanas, depois de se saber o cartaz do MIL. Entre os dois anúncios, Pedro Azevedo, o programador do Musicbox, fora questionado sobre a ausência de mais e violento rock no cartaz do festival. Na altura, apontou alguns nomes que lhe tinha custado deixar de fora. Ei-los aqui, uma semana mais cedo. Os reunidos 800 Gondomar a apresentar São Gunão, o início do segundo acto da sua história e o melhor capítulo que escreveram até ao momento. Os Cortada com um EP ainda fresco, tesão e tensão prensadas em três faixas; sem tempo a perder. E Yung Xalana a abrir o livro, no terceiro concerto em nome próprio pós-MEIA/FÉ.
“Tudo provém do amor”
“Doner box dá cinco a zero [a Black Midi]”, responde Daniel, que já acompanhou Vaiapraia ao vivo e hoje, além de ser um dos Cortada, toca com os dois Lourenços em MEIA/FÉ. A sua resposta é a única que está correcta. “Mas calma, tinham que ir sempre ao mesmo sítio”, acrescenta Lourenço. Reina a anarquia. Pelo menos já se está a falar de música em vez de iogurtes gregos – aconteceu imediatamente antes – ou de tostas mistas com “três fatias de queijo mais três de fiambre” – supostamente, é a maior do país, virá à baila daqui a pouco. De vez em quando, discorre-se sobre música, sobre ambições e propósitos, sobre dúvidas e dores, sobre crescer e sofrer em Lisboa (e no Porto e em Rio Tinto). Coisas concretas.
Independentemente do assunto, o registo mantém-se hiperactivo, o défice de atenção é tremendo. Novos temas e memes e histórias são introduzidos constantemente. Há piadas privadas e pedidos de ajudas, sucedem-se as referências paralelas. Só quando se está a editar a conversa e a separar o trigo do joio, passados uns dias, é que se percebe que tudo isto traduz na perfeição o que anima e aproxima estes três grupos. O noise-rock dos Cortada, a lembrar os pigfuckers americanos de finais de 80s, é bem diferente da violência pós-punk de Yung Xalana e mais ainda do garage-rock orgiástico dos 800 Gondomar. Mas a mesma ansiedade atravessa os três projectos, e uma relação de amizade une os seus membros. As vidas deles podiam ser as nossas.
Eis uma transcrição parcial, mas honesta, do chat. Sem caos, nem conversa mole.
Expliquem-me este concerto no Musicbox, este line-up. Juntar Cortada e Yung Xalana é óbvio: são amigos, uns tocam ou tocaram nas mesmas bandas, ainda recentemente estiveram todos juntos na Lisa. Mas como é que os 800 Gondomar aparecem aqui?
Lourenço Dias: Mandei uma mensagem ao Rui, no preciso momento em que ele se tornava o herói do Paredes 2024. Ele disse que curtia a ideia, mas para falar com o Modas [da Pointlist, que agencia os 800 Gondomar e agenciou Lourenço noutra vida, noutra banda] para afinar detalhes. Falei com ele, tudo bem fast and easy e pronto.
Herói do Paredes de Coura 2024? Que conversa é essa?
Rui Fonseca: Não sei do que falam. Mas mandei um excelente mortal na prancha. E em convites desta malta não há que pensar muito, let’s go Musicbox abaixo.
Mas isto inicialmente era um concerto de Cortada ou de Yung Xalana? Ou dos dois?
Daniel Fonseca: O Pedro tinha gostado bastante de Cortada logo na altura [em Maio, antes de sair o EP, quando os ouviu pela primeira vez]. E o Musicbox tem sido casa amiga. Temos o Costa [vulgo Co$tanza, produtor e actual baterista de Yung Xalana] a fazer as luzes lá, a Inês na programação… E agora, com a proactividade do Xalana, a coisa pegou e alinhou-se para a noite idílica que já se idealizava. Se correr bem? Veremos.
Estão a pensar tornar isto numa coisa mais regular?
DF: Calma. Não somos os MДQUIИД. Gostávamos, e isso era interessante e bonito, mas sabemos que as coisas não funcionam assim. Os tempos de Sabotage já foram.
LD: RIP. Sabotaram o Sabotage.
DF: Uma banda tocar duas vezes em Lisboa ou no Porto num espaço de seis meses é meio proibido.
Se bem que os Cortada, em quatro ou cinco meses, estão a dar o quatro concerto. Mais um DJ set na Lisa. O Yung Xalana também tem estado a tocar todos os meses.
Lourenço Abecasis: Agora imagina eu [a tocar nas duas bandas].
DF: Certo. Agora que pões dessa forma é mesmo bué fixe. E algo que só acontece graças a amigos e força nossa para tal. Mas a questão da música indie e de as pessoas quererem ouvir coisas novas só porque sim morreu um bocado. São noites duras, penosas e com pouca recompensa – “algorithms are ruining everyone’s music taste”.
Quase não ganham dinheiro.
DF: Fazer isto pelo dinheiro é uma loucura.
LA: Tem de ser pelo clout.
DF: Pelo amor à cena. A retribuição tende a ser mais em termos de valor e de apreciação. E até isso me parece estar mais complicado.
LD: O sacrifício a nível pessoal é inimaginável. Estive prestes a ter um breakdown várias vezes nos últimos dois meses. A trabalhar oito horas [no meu emprego, na televisão], depois estar a ensaiar, a marcar coisas, a responder a mensagens e emails, a conjugar e a tratar de tudo. E o que o Daniel diz é verdade. No final começas a questionar: para quê?
DF: Exacto.
LD: Para que é que eu me sujeito a isto?
Consegues responder a essa pergunta?
LD: A resposta simples é amor. Mas o amor tem de ser algo comunitário. [Porque] amor sozinho é masturbação. E, às vezes, [um gajo] sente-se um bocado sozinho nesta luta. A remar contra a maré só com meio remo. Anda sempre tudo aos grupinhos. No Porto sentia menos isso.
Isso?
LD: O isolamento, o auto-centrismo. Os skaters e os emos e os punks e os de Belas Artes e os mitras. Conviviam todos, e iam aos mesmos gigs. Se calhar por ser um sítio mais pequeno.
Bernardo Pereira: Em Lisboa sinto que tens escala para já ter vários nichos. Mas nunca o suficiente para os tornar mais do que isso.
Vocês já andam todos nisto há alguns anos. Têm e tiveram outras bandas. Sentem que as coisas estão piores agora?
LD: Acho que não há aquela cena do “safoda vou descobrir isto”, [dos tempos] do Sabotage. Onde a saída à noite era essa mesmo, ver um gig de merda, beber umas jolas e falar sobre isso. E, no meio desses gigs de merda, havia um incrível.
DF: Dar 100% nisto é muito duro. Não é possível, a meu ver, uma entrega total. Vivemos num mundo em que é cada um por si. Temos de dedicar-nos a outras coisas e usar isto como lateral, a música. Uma pessoa tem só tanta paciência quanto a felicidade que tira de tal. E é exaustivo, mesmo. Mas penso que o Rui pode dar outra resposta, sendo das bandas mais incríveis e emblemáticas do nosso país. Com outra pedalada e adesão.
LD: Ya, Rui, fala aí. Sobre isto tudo.
RF: Acho que tudo provém do amor. Amor próprio, amor ao outro, amor à unidade colectiva e até às diferenças que nos unem. Se calhar, o Porto tem o tamanho ideal para que essas diferenças sejam respeitadas e celebradas de forma plástica. Em cidades maiores talvez já haja uma maior hipótese de fuga daquilo com que não te identificas. Acho que todos fazemos [música] porque nos é intrínseco. O tempo que passaremos a fazer isto é que já pode depender muito da comunidade que vamos construindo. Eu estou a curtir a minha.
Essa comunidade é física e geográfica? Isto é, resume-se ao Porto e a Rio Tinto? Ou é uma coisa mais ampla, que cobre o país?
RF: Falo num sentido mais amplo, ya. E isso muitas vezes está directamente relacionado com as tuas ambições literárias. Não quero escrever para sempre sobre a minha rua, mas, se assim tiver de ser, tenho de tornar a rua maior. Todos os caminhos vão dar ao hit.
Quantos concertos é que os 800 Gondomar deram este Verão?
RF: Para aí uns 15, acho.
É a primeira vez que tocam em Lisboa desde que vieram ao B.leza, em Maio?
RF: Yes.
Também não tocaram muito mais no Porto, pois não?
RF: São cidades que ficam mais off season no Verão. Tivemos uma cena ou outra, mas regra geral anda-se mais a correr os festivais. E quatro em cada cinco são no Minho.
DF: Essa merda irrita-me. 800 [Gondomar], há oito anos, varria três, quatro, cinco concertos em Lisboa na boa num Verão. Sempre cheios, porque era grande festa. E o ponto também era esse… Se calhar a música de um modo geral cresceu noutras direcções? Ou se calhar éramos só mais novos e agora não sei o que se passa com a juventude e [eles até] andam a ter este tipo de vida que nós tínhamos? Duvido. Mas não sei.
Não terá a ver também com a internet? E com as maneiras como ela mudou as maneiras como nos relacionamos uns com os outros e com a própria música?
DF: Há uma inércia grande que nos puxa a não fazer coisas. Mas nós – e falo por mim, pelo Xalana, por Cortada – estamos a tentar, mesmo assim. Não sei qual será o ponto de ruptura, mas este mundo da música não tem sido o mais simpático. O esforço, trabalho e empenho é grande e a recompensa tem sido pequena. Isto emocionalmente, nem falo em dinheiro.
RF: Acho que a maneira como se absorve música e música ao vivo mudou drasticamente. Por isso é que as bandas de instrumentos voltaram a ser urgentes. Para voltar a trazer acessibilidade, identificação física, referência visual.
BP: Eu vejo isto a acontecer em Lisboa já com malta mais nova que nós. Estão atomizados porque essa é a tendência digital, mas não é por aí que vai deixar de haver gente nova a fazer barulho numa garagem qualquer em Massamá.
Sentem que o público, sobretudo o mais novo, responde a essa urgência?
RF: Sinto que o pessoal mais novo, generalizando abusivamente, está lentamente a entrar nisso outra vez, sim. Até o trap teve de se virar para as guitarras.
No caso concreto dos 800 Gondomar, por exemplo, sentiste que houve uma renovação do público?
RF: Acho que está a haver, lentamente. Quem esteja agora em idade de licenciatura provavelmente nunca apanhou um show nosso no passado. Estão a descobrir a banda pela primeira vez. Esta e muitas outras.
Os 800 Gondomar lançaram um disco este ano, e sei que Yung Xalana vai gravar com o Miguel Abras em Outubro. E os Cortada? Também estão a pensar voltar para estúdio em breve? Nos concertos tocam mais canções, além das três do EP.
Pedro Pimenta Almeida: Temos nove canções. E umas quantas ideias na gaveta em que ainda não sei se voltamos a pegar.
BP: E já falámos por alto [em ir para estúdio]. Sinto que esta banda se mexe relativamente rápido, portanto, agendas paralelas permitindo, devemos voltar a fazer isso entretanto.
Tenho sentido essa rapidez de que falas. Lembro-me do Daniel, no início do ano, em Fevereiro, me falar de uma banda nova com que andava a ensaiar. Passados uns meses havia um EP gravado. Mais um mês e o CORTADA estava cá fora. Porquê esta urgência, que se calhar não há ou houve noutros projectos vossos, como MEIA/FÉ?
LA: Desde o início da banda que temos tido essa atitude de proactividade e não ficar a pensar muito nas coisas e tal... E funciona bem. Pelo menos do meu ponto de vista, foi isso que fez a diferença entre ter um projecto com o qual consegui finalizar alguma coisa e um projecto que não foi dar a lado nenhum. Este EP foi a primeira vez que lancei algo meu. E foi muito por causa dessa proactividade. Queremos fazer cenas, e não pensar muito nelas costuma funcionar bem.
BP: Isto não implica que seja um método melhor ou pior do que qualquer outro – nesta banda funciona, noutras de certeza que não. Nem que resulte em música melhor ou pior.
Essas canções novas soam muito diferentes das que gravaram no EP?
LA: Metade delas já tínhamos feito quando gravámos o EP. Aliás, até tentámos gravar uma, mas não tivemos tempo. As novas são capazes de ser um bocado diferentes, mas diria que a onda é a mesma. A onda é partir tudo.
Musicbox. 19 Set (Qui). 21.30. 9€
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