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Na cave da escola, estes miúdos lutam até fazer sangue

‘Class Enemy’, com encenação de Teresa Sobral, está em cena no São Luiz entre 12 e 27 de Outubro. A peça segue a história de seis alunos que se sentem "abandonados pelo sistema".

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
Class Enemy
©EGEAC – Teatro São Luiz, Pedro Rosário NunesClass Enemy
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Há quadros de giz, há cadeiras e mesas, e há seis alunos. Existiriam mais no início, mas estes foram os que resistiram, os que se aguentaram depois de terem de aturar vários professores que, no fim, acabariam por não resistir eles próprios. Agora, estão à espera que venha o próximo e que, desta vez, lhes ensine alguma coisa de útil, e que os ponha a pensar. Enquanto isso não acontece, os rapazes vão esperando e tomando conta deles mesmos, ao passo que tentam ensinar e aprender uns com os outros. A partir deste sábado, são eles que ocupam o São Luiz Teatro Municipal com Class Enemy.

Estamos na cave da escola, iluminada pelas frechas no tecto e pela clarabóia, mas também podíamos estar numa cave qualquer. De tempos a tempos, ouvimos o barulho nos corredores, da campainha que ordena os alunos a voltar às salas de aula, ou a sair para o recreio, onde se instala o rebuliço. Pelo menos, imaginamos nós, já que durante o tempo todo permanecemos dentro destas quatro paredes pintadas de negro. Ao contrário dos outros que habitam os andares acima, onde o sol lhes chega por inteiro, estes seis rapazes fazem parte de uma turma PIEF (Programa Integrado de Educação e Formação). 

Class Enemy
©EGEAC – Teatro São Luiz, Pedro Rosário Nunes

De maneira a retratá-los num quadro realista, a encenadora Teresa Sobral decidiu que era importante estar com alunos que frequentam este programa e fê-lo na Escola EB 2,3 das Olaias. “Foi um processo muito interessante, porque estivemos numa escola – a Escola Básica das Olaias. Fizemos uma leitura para uma turma PIEF e depois estivemos imenso tempo a conversar com eles. Pedimos para eles nos ajudarem, pedimos ajuda para o texto, se havia termos que eles achavam que não estavam bem, e como é que eles falam, como é que eles sentem o espectáculo, se eles tinham alguma coisa para nos dizer”, diz-nos, após um ensaio no São Luiz. 

A peça é uma adaptação da obra homónima de Nigel Williams, que se estreou em 1978, no Royal Court Theatre, em Londres. São quase 50 os anos que separam uma peça da outra, por isso, naturalmente, elementos como a linguagem, ou como o contexto cultural em que as personagens se inserem, são diferentes. Daí, ouvirmos cantar e tocar hip-hop e rock, em vez do punk da altura. “O punk rock era a zona da música em que havia irreverência, em que apontavas os erros à sociedade e ao capitalismo. Hoje em dia, tens isso no hip-hop e no rap, portanto nós não usámos, obviamente, o rock”, explica. Por outro lado, e apesar de se terem passado 46 anos, há coisas que se mantêm na mesma. Uma delas é a natureza humana.

Class Enemy
©EGEAC – Teatro São Luiz, Pedro Rosário Nunes

Ferro, Alvorada, Pito, Paixão, Coxo e Tetas não esperam por ninguém para começar a aula. Enquanto o fumo ocupa a sala Mário Viegas e começamos a tomar os nossos lugares, parte do grupo já está em cena. À medida que a espera por um professor se torna cada vez mais longa, enquanto os restantes se resignam à sua condição, Ferro insiste na vontade e na necessidade de aprender, mesmo sem um professor. Um a um, passam eles a segurar o giz e a ensinar os colegas. As aulas, que vão da jardinagem à culinária, dão espaço aos rapazes para falar acerca de temas que lhes interessam, acabando também por levá-los a abrir-se uns com os outros. Num discurso que privilegia a violência quer física, quer emocional, ficamos a saber o que os apoquenta, do que têm medo, e o que vivem fora desta cave.

“Há uma violência intrínseca na linguagem deles, porque é a violência que eles conhecem, é a violência que a sociedade lhes atira desde que nasceram. Eles já nascem em sítios pobres, e estou a extrapolar para as realidades que conheço de alguns miúdos de escolas onde dei aulas de teatro, mas estamos a falar de miúdos que vivem em prédios degradados, em bairros degradados. Às vezes, os pais têm vários empregos, trabalham de manhã, à tarde e à noite, não têm computadores, tablets, internet, não têm nada, portanto são miúdos que crescem com a desigualdade colada à sua pele”, continua.

Class Enemy
©EGEAC – Teatro São Luiz, Pedro Rosário Nunes

Contudo, por muito que tenham sido “abandonados pelo sistema”, eles continuam à procura do conhecimento, em qualquer forma que este possa chegar, nem que seja à luta. “Na verdade, eles estão à espera de um Godot, estão à espera de alguém que chegue um dia e que lhes pegue ao colo, mas que nunca vem.” E, em mais do que uma ocasião, Paixão vê uma figura que se aproxima da sala – um homem alto, musculado, relativamente novo, com cara de simpático e que, nas mãos, carrega muitos livros. 

Para Teresa Sobral, a principal questão que se retira da experiência deste grupo de jovens é que continua a ser uma realidade a combater nas escolas portuguesas. “Os miúdos são colocados à parte da sociedade, por nós e pelo próprio sistema. Os professores, muitos deles, até tentam que as coisas funcionem bem e esforçam-se por eles, mas depois os professores também são completamente comidos pelo próprio sistema”, nota, realçando que o ensino falha em certos aspectos.

Class Enemy
©EGEAC – Teatro São Luiz, Pedro Rosário Nunes

“O ideal seria parar durante um ano e reestruturar, porque as escolas não estão abertas à comunidade e deviam estar. Deviam saber que comunidade envolvente têm, quem são as pessoas, o que é que se pode fazer para trabalhar com a comunidade”, mas a encenadora sabe que “o teatro não muda nada”, até porque, se mudasse, “já tinha mudado há muito tempo”. Assim, fica apenas o desejo de despertar a atenção para estas questões. Se levar uma ou duas pessoas a conversar sobre isso, já é bom.

São Luiz Teatro Municipal. 12-27 Out. Qua-Sáb 19.30, Dom 16.00. 12€

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