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Quando Mário Coelho tinha oito anos, a sua mãe morreu de cancro nos intestinos. Mário ficou com o diário da mãe, no qual durante dez anos escreveu sobre várias coisas, uma delas a sua paixão pelo cinema. E como aqui o ditado “quem sai aos seus não degenera” parece bater certo, também Mário partilha desse gosto pela sétima arte, em especial por filmes de terror. Quando eu morrer, vou fazer filmes no inferno! partiu então da sua relação com a mãe e dos fantasmas hereditários que carregamos, ao utilizar códigos característicos do terror.
Esta peça era para ter sido a quinta criação de Mário Coelho, vencedor da segunda edição do Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II, mas acabou por ser a décima. Estreia-se esta sexta-feira, dia 23 de Janeiro, na Culturgest, onde fica até sábado, 25. A peça surgiu-lhe há cinco anos e, apesar de esta ser talvez a quadragésima versão do texto, a ideia principal manteve-se. “O que é que é sermos assombrados? O que é que são fantasmas, fantasmas de família? Há esta ideia de que já vimos ao mundo com questões genéticas e hereditárias e há também a ideia de ser assombrado e, de repente, querer fazer um filme e não ser possível. E sentir que a minha vida não é a minha vida e a minha liberdade estar a ser violentada”, começa por dizer o encenador e dramaturgo, depois de um ensaio.
O terror num set de filmagens
A peça levanta várias questões. Desde logo, a relação entre uma mãe e uma filha, que trabalham juntas no set de um filme. O elenco conta com actores com quem Mário Coelho já tem vindo a trabalhar há muitos anos e outros com quem está a trabalhar pela primeira vez, como Lúcia Moniz, que interpreta a personagem principal, a mãe e realizadora do filme. A actriz encarna Odília, que se vê confrontada com a tarefa de realizar um filme de terror, numa altura em que as grandes produtoras não parecem valorizar o trabalho dos criativos, e ao mesmo tempo que a relação com a filha se encontra turbulenta. “As próprias questões que são colocadas acerca do filme de Odília são também questões que o próprio espectáculo tem”, já que é como se estívessemos “dentro do psicológico da Odília e, por isso, faz sentido que o espectáculo acompanhe essas ramificações que estão um bocadinho por toda a parte. Estes vírus são aquilo, que no género do terror e do suspense, existem, estão aqui, mas não são totalmente detectáveis.”
Mas o espectáculo não nos dá tudo isto desde início. Aliás, o início dá-nos muito pouco. Na sala de ensaios, na Companhia Olga Roriz, uma rapariga está sentada num sofá. À sua volta, várias pessoas começam a dançar e a cantar. Algumas tentam agarrá-la, outras andam de um lado para o outro. À medida que ela grita, tenta afastá-los e empurrá-los, mas de repente, tudo pára e volta ao normal. Afinal, estamos num set de filmagens. É nestes e noutros momentos em que entram os códigos do terror. “É o género que me acompanha desde criança e gosto da ideia do teatro se aproximar do cinema e de ter um teatro de género”, diz.
Das relações familiares aos problemas do cinema
E através desta linguagem, há mais do que um tema que se levanta. O primeiro debruça-se sobre as dinâmicas das relações familiares e também de trabalho. “Como é que nos encontramos? Como é que vamos avançando em conjunto, mesmo sendo pessoas diferentes que vêm de lugares diferentes? Como é que vamos crescendo? Como é que vamos tornando este mundo um bocadinho melhor do que aquilo que é?” Até porque, acredita Mário, “este mundo está podre. Não estamos a conseguir dialogar uns com os outros, estar uns com os outros. É difícil partilhar afecto.” E, neste sentido, como é que quebramos ciclos que já nos chegam de trás? Como é que rompemos com “os vírus” que, desde sempre, temos vindo a perpetuar?
Por outro lado, a peça é claramente uma crítica à indústria cinematográfica em Portugal. “É a tal perda de controlo. A Odília quer fazer o seu filme e, para o fazer, vai ter de abrir mão de uma série de coisas. Os produtores estão a pensar na viabilidade comercial do projecto, o que roça um lado um pouco duvidoso”, diz o encenador, referindo-se também aos abusos de poder e ao esquema de hierarquias em que esses abusos se sustentam. Não só no cinema, o espectáculo toca ainda no teatro, do ponto de vista da crítica – “Hoje em dia, a crítica em Portugal é raro. São muito poucas as pessoas que escrevem crítica, análises daquilo que vêem. Mas o problema não são as pessoas, o problema é o sistema em que todos estamos inseridos.”
Mário Coelho estreia Quando eu morrer, vou fazer filmes no inferno! na Culturgest, para seguir para Braga, a 15 de Fevereiro, e depois para Torres Vedras, Matosinhos e Lagos. Se tudo correr bem, mais cidades se seguirão. Em Lisboa, o encenador prepara-se para apresentar, em Março, uma peça no LU.CA a partir de O Principezinho. No final do ano, irá estrear uma nova peça, que se chamará Aquela canção sobre o fim.
Culturgest. 23-25 Jan. Qui-Sáb 20.00. 14€
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