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Ainda antes de a pandemia se instalar entre nós, já o mundo adoecia a ritmo galopante. As alterações climáticas, a escassez de recursos naturais, o conflito entre os avanços tecnológicos e a desconexão humana e a precariedade generalizada das relações laborais são apenas alguns problemas socioeconómicos que atravessam os nossos dias. Ironicamente, a frenética vida moderna não dá margem para que eles sejam pensados e discutidos com regularidade.
A paragem forçada pela pandemia tirou-nos (quase) tudo, mas deu-nos tempo para reflectir sobre questões há muito adormecidas e, sobretudo, tornou clara a urgência de uma auto-análise crítica. “Contingere”, exposição colectiva que está na galeria Cisterna, em Lisboa, entre 17 de Setembro e 20 de Novembro, evoca essa necessidade de repensar a vida em sociedade e a nossa relação com a natureza.
“Já estávamos num momento crítico, mas o isolamento mostrou que estamos inseridos na natureza e que temos que ser um pouco mais humildes”, comenta Mariana Hartenthal, curadora da exposição. A investigadora brasileira, que vive e trabalha em Lisboa, aponta também a “proximidade da pele” como tema incontornável na actualidade — a ausência e distância impostas pelo vírus evidenciaram a necessidade humana de contacto físico.
Além da sede de natureza e do outro, a exposição aborda “a impossibilidade do trabalho”, “o adiamento do prazer”, “a casa como refúgio ou cárcere” e “a natureza, simultaneamente cura e ameaça”, segundo o texto de apresentação. Mas, como as questões mencionadas anteriormente, a maior parte das obras mostradas não é nova. Apenas uma foi criada durante a pandemia, “algumas nunca foram mostradas em Portugal” e há “casos em que o artista fez uma nova versão ou edição para a exposição”.
Em ano atípico, a Cisterna retoma actividade com um modelo de exposição igualmente atípico na sua programação. “Normalmente, a galeria faz exposições com um ou dois artistas, mas esta colectiva é quase uma forma de resistência”, atira Mariana Hartenthal sobre o evento que leva “nove artistas a um espaço relativamente pequeno”. São eles Ana Fonseca, Bettina Vaz Guimarães, João Távora, Jorge Leal, Liene Bosquê, Maya Weishof, Miguel Santos, Susana Anágua e Zoë Sua Kay.
Todos tinham uma relação prévia com a galeria e alguns tinham exposições previstas para os últimos meses naquele espaço. Uma vez que a pandemia obrigou à revisão e recalendarização dos programas de galerias e museus, a Cisterna escolheu fazer uma exposição colectiva para evitar o adiamento e as sobreposições que pudessem surgir.
“Contingere” integra uma grande variedade de formatos, técnicas e materiais, que traduz as múltiplas visões dos artistas sobre os mesmos questionamentos. Há obras de desenho, pintura, escultura, fotografia ou instalação, resultantes de uma curadoria que “não pretende forçar qualquer uniformidade entre elas”, adverte Mariana Hartenthal.
O contraste dos trabalhos é visível em Vestígio III, instalação em metal e fio de algodão de Susana Anágua, “muito ligada às questões da indústria e do trabalho”; Paisagem, acrílico e tinta da china sobre papel de Jorge Leal que, embora seja de 2019, inclui a inquietante inscrição “nada dura para sempre; ou A gente canta e dança, obra colorida e alegre de Bettina Vaz Guimarães que destoa das restantes.
Embora seja um dos sectores mais afectados pela pandemia, a arte está demasiado familiarizada com a incerteza que paira sobre estes dias. É seu papel, aliás, fazer-nos “acreditar na capacidade de criar outros mundos com poucos recursos”, reitera a curadora. “Os artistas sabem lidar muito bem com as contingências que lhes aparecem na vida.”
Galeria Cisterna. Rua António Maria Cardoso, 27 (Chiado). Ter-Sáb 11.00-19.00. Entrada livre