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Não é que sejam agentes do mal, mas tal como estão as coisas, quando uma imobiliária fecha portas e dá lugar a outro negócio, a mudança tende a aquecer o coração da vizinhança. No caso do número 733C da Estrada de Benfica, gelou-o. Foi igualmente bom. Aqui abriu, a 4 de Agosto, a Lumi Geladaria – e no que restou do Verão foi conquistando o bairro, tanto humanos como caninos. A uns com o “sabor de infância”, uma mistura sumo de laranja, banana esmagada e bolacha Maria; a outros com o “patudo”, um gelado adequado para cães, de avelã sem açúcar. Agora preparam-se para combater a sazonalidade com a introdução do brunch, no qual não falta gelado, naturalmente.
Luís Antunes, 47 anos, e José Miguel Pereira, 43, sonharam juntos este projecto e fizeram nascer a obra (não há registo da vontade de deus, como escreveu o poeta; o único facto religioso a relatar é que a bicentenária Igreja de Benfica está ali a dois passos). Nenhum deles tinha experiência em restauração: Luís era director de recursos humanos, com um passado em consultoria e gestão; José Miguel, enfermeiro, tendo trabalhado 18 anos no bloco de operações de urgência do Hospital de Santa Maria. “Como enfermeiro, passei por muita coisa e vi muita coisa. Trabalhei muito directamente com o Covid, acompanhei as fases todas: as menos boas, as mais estáveis… E [algo assim] às vezes ajuda-nos a pensar o que é que a gente quer da vida”, diz este último. “Viver numa vida de ‘e se…’, acho que ninguém gosta. ‘E se corresse bem?’ Então resolvemos avançar.”
“Acima de tudo, isto é um projecto de mudança de vida”, continua José Miguel. “A nossa paixão por gelados sempre nos pôs a brincar: um dia abrimos uma geladaria. As coisas foram se tornando mais sérias, fomos tirar um curso para ver se gostávamos. A pandemia ajudou-nos também a pôr a cabeça mais no lugar e, após os cursos, fomos desenvolvendo [o projecto] e ficou decidido que, quando aparecesse um espaço, abriríamos a geladaria.” O espaço apareceu, em Benfica. “Somos aqui do bairro”, confidencia Luís, para logo se corrigir. “Na verdade, não somos do bairro. O Miguel é madeirense e eu sou ribatejano. Eu sou de Abrantes, ele é do Funchal. Vivemos aqui.” É como se fossem. O que lhes permite uma leitura mais informada do lugar que procuram ocupar e porquê.
“É um bairro típico de Lisboa”, observa Luís. “O comércio ainda é muito tradicional. E achávamos que, ao trazer um projecto destes para o nosso bairro, iríamos trazer também uma lufada de ar fresco. Não só a frescura dos gelados, mas ter espaço com [bom] design, agradável, a que as pessoas gostassem de vir. E a verdade é que Benfica tem-nos recebido bem”, continua. “Às vezes a tendência é abrir nas Avenidas Novas ou na Baixa. Mas acreditamos que Benfica se está a renovar. Estamos a falar de quase 40 mil habitantes. E um comércio de qualidade, diferenciado, consegue-se encontrar em Campo de Ourique, em Alvalade, na Baixa. Mas em Benfica começa agora a surgir. Este bairro tem muito futuro. Também pela quantidade de condomínios novos que estão a aparecer.”
A proximidade é um dos três valores que a dupla de amigos estabeleceu para nortear a Lumi. E isso significa fomentar uma certa circularidade com os negócios vizinhos. “Muitos equipamentos hoteleiros que temos aqui foram comprados no comércio local, desde as cafeteiras às colheres de chá. A cutelaria comprámos aqui, nos comerciantes da zona, que também são nossos clientes”, conta Luís. As frutas são compradas no Mercado de Benfica e os sabores disponíveis no dia variam consoante o que lá vão encontrando. “Há clientes que passam no mercado e depois chegam aqui e dizem: ‘hoje vi lá muitos melões, será que vocês têm melões?’”, ri-se José Miguel. É fácil confirmar: a produção está à vista de todos, através de uma janela de guilhotina atrás do balcão.
Luís e José Miguel revezam-se na produção. Num dia, está um deles no fabrico e o outro a atender quem chega; no dia seguinte, trocam. Luís descansa-nos sobre a consistência. “Eu e o Miguel fizemos várias formações e o que aprendemos foi, sobretudo, como é que se faz o balanceamento de gelados. E na verdade é química. Se definimos que esta receita tem 18% de açúcar, X% de água, X% de fruta, a receita sai sempre igual, porque cumprimos à grama.” Até à visita da Time Out, já tinham feito 58 sabores. “Claro que temos sempre os básicos: o morango, o chocolate, a nata”, diz José Miguel. “Depois fomos procurando sabores que nos atraíssem a nós e às pessoas.” Depois, consoante o que há no mercado e o que vai revelando ter mais saída junto da clientela, vão rodando os sabores. “Também para as pessoas não chegarem aqui e verem sempre a mesma montra.”
“Há um sabor que gostamos de referir. O nosso sabor, que é o ‘sabor de infância’”, acrescenta Luís. “Quando fizemos o curso com o formador italiano, ele disse-nos: vocês têm de criar a vossa receita. Nós decidimos criar uma receita que ainda não existisse [nos gelados]. E chamámos-lhe sabor de infância. Basicamente é daquelas papinhas que os pais dão às crianças quando são pequenas, que é sumo de laranja, banana esmagada e bolacha Maria. Há pessoas que chegam aqui e dizem: ‘Ah, acho que não comi isso’. Mas quando provam parece que têm uma regressão à infância, um flashback.” Luís acredita que esse é o sabor que distingue a Lumi, embora destaque outros “menos frequentes”, como a mistura de limão, rosmaninho e mel; o de papaia; ou de pitaia. “A pitaia é um sabor que as pessoas ficam sempre: pitaia?! E é produzida em Portugal. Não é importada”, garante. Luís dá outro exemplo de um fruta tropical que dispensa importações: a manga. “O aquecimento global também chega ao nosso país. Começamos a ter culturas que não tínhamos”, explica.
Não é só uma questão ambiental. A “portugalidade” é o outro dos valores da Lumi. “Isso percebe-se logo no título. Lumi Geladaria e não gelataria. Geladaria vem gelado e gelataria vem de gelato”, esclarece Luís. “Embora o nosso método seja italiano, procuramos que tudo o que temos aqui seja sobretudo produto nacional, desde as fardas e dos nossos ténis, que são Sanjo, aos produtos”. As louças também são nacionais: Bordallo Pinheiro e Costa Nova. É numa tacinha desta última marca que é servido outro dos sabores com que estão a conquistar a vizinhança: o “patudo”. “Somos uma loja pet-friendly”, continua Luís. “Então temos este sabor, à base de avelã sem açúcar.” A criação é mesmo para animais, embora os humanos o possam consumir, informa Luís. “Na verdade é um gelado que foi desenhado para diabéticos. Mas como os animais podem consumir três frutos secos, avelã, amendoim e caju…” E os cães gostam? “Gostam”, afiança José Miguel.
Os gelados são preparados na véspera. “Ficam em baldes no frigorífico a maturar. É como o pão, que fica a fermentar. Fica a mistura das frutas, com os açúcares durante umas 12 horas (mas pode ir até dois, três dias). Esse processo de maturação faz com que as frutas fiquem mais envolvidas com o açúcar. No caso dos frutos secos também, quando é com o leite e quando leva natas. Embora o gelado artesanal leve quase sempre leite”, diz Luís. O leite é Terra Nostra, de pastagem. “São vacas que pastam o ano inteiro. São vacas felizes, como diz o anúncio. E a verdade é que faz a diferença. Quando usamos leite de vacas que no Inverno estão fechadas em estábulo, que só comem palha e forragens, nota-se.”
A Lumi tem sempre uma “panóplia” de gelados de leite, mas a oferta inclui ainda sorvetes, que são gelados de fruta com base de água. “Não tem nenhum derivado de animal”, assegura Luís. São vegan. Há oito sabores, com destaque para o de chocolate negro vegan – “é muito bom”. Se pedir para experimentar primeiro, vão dar-lho a provar numa colher de metal e não numa descartável. A ideia é diminuir o consumo de plástico, o que fecha a tríade de valores desta geladaria com o único que falta por esta altura: a sustentabilidade. “A sustentabilidade evidencia-se no nosso papel, que é reciclado, nos copos que utilizamos, de papel craft, ou seja, com menos branqueamento e menos impacto ambiental. Fazemos naturalmente a reciclagem, procuramos ter menos desperdício, as luzes são todas LED…”
Outra forma de fomentar a sustentabilidade é através da reutilização. Na Lumi, é possível comprar gelados para levar. Há duas caixas: a mais pequena leva meio litro e dá para dois sabores (10,90€); a maior é de um litro e pode conter até três sabores (19,90€). Quem as reutilizar para a compra seguinte tem direito a um desconto. “Voltamos a encher e cobramos menos um euro pelo gelado. E há aqui pessoas, por exemplo um senhor mais velho, que só leva caixa. Quase todos os dias leva uma caixa”, conta Luís. “Acho que nunca se sentou aqui a comer um gelado”, arrisca José Miguel. Quem fica usufrui de um espaço que, acreditam os sócios, se distingue de outras geladarias, com uma decoração que tanto dá para o Inverno como para o Verão. “Tivemos a preocupação de não ter um espaço muito branco e asséptico, muito clean. Procuramos ter este verde, mais fresco”, aclara Luís. “A tendência das geladarias é serem muito brancas. Quando falamos com o arquitecto de interiores que fez o projecto, dissemos que queríamos ter um espaço com luz e claridade, mas com o fundo em pedra e um ar mais tradicional, mais agradável, mais quente.”
De resto, a Lumi não se resume aos gelados – que são servidos em copo ou cone por 2,80€ (um sabor), 3,80€ (dois) ou 4,80€ (três), mais 1€ por cada bola adicional ou 0,40€ por topping (bolacha caramelizada, marshmallows, goji, pepitas de chocolate…). Há bolos, brownies, waffles, crepes, batidos, sumos naturais e uma oferta cafetaria que vai do café bio ao chocolate quente. E no Outono foi introduzida uma novidade: o brunch. “É uma forma de combater a sazonalidade dos gelados”, afirma Luís. Custa 16,5€ e tem uma versão normal e uma veggie, com quiches, panquecas, gelado com granola e fruta, sumo natural e um café com sobremesa gelada. “Acima de tudo vai ter gelado”, ri-se José Miguel. Até porque, aqui, acredita-se que “tudo melhora depois de um gelado”. “É a nossa assinatura.”
Estrada de Benfica 733C (Benfica). 21 407 5035. Ter-Sex 12.00-19.00, Sáb-Dom 11.00-19.00
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