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Um ciclo pode tanto ser uma série de acontecimentos que se sucedem numa ordem determinada, como um conjunto de espectáculos sobre um mesmo tema ou até parte de um fenómeno periódico durante um certo espaço de tempo. São tudo definições do dicionário que se poderiam aplicar também, de alguma forma, ao trabalho de José Maria Neves e Cláudia Abreu da Silva no restaurante que abriram na Mouraria em Fevereiro. O Ciclo é modesto em tamanho, mas ambicioso na missão que se propõe a cumprir: acompanhar o ritmo da natureza e o que esta tem de melhor para dar, sem pressas ou atalhos, prezando sempre a qualidade.
Há quem diga que é preciso uma aldeia para educar uma criança, mas para abrir um restaurante quando não se tem uma rede de apoio também não é diferente, especialmente num momento tão competitivo. “Comecei isto sem um estojo de ferramentas e acabei isto sem um estojo de ferramentas, mas trouxe muita gente com estojo de ferramentas para ajudar”, conta José Maria Neves. E foi assim desde o início. “Nós sempre tivemos a ambição de ter o nosso espaço, mas não tínhamos capacidade financeira. Surgiu a boa vontade de um grande amigo da minha mãe, o tio Domingos”, continua. “Se não fosse ele, não teríamos chegado a esta fase.”
Quem pôde ir acompanhando um pouco do percurso nas redes sociais, sabe que Domingos não foi a única ajuda. Sucederam-se os amigos, tantos do meio gastronómico, que ajudaram o casal a transformar um escritório num pequeno bistrô, onde já começam a dar que falar. Não é um acaso. Tanto José Maria como Cláudia trabalharam em alguns restaurantes da cidade, antes de se mudaram para França em 2017. Foi, aliás, assim que se conheceram. “Eu nunca pendurei um quadro na vida e conseguimos finalizar uma obra que não era fácil”, orgulha-se. “Cerca de 80% disto foi feito por nós. Tivemos duas pessoas a fazer a parte das canalizações e a levantar paredes, porque aí não se pode inventar muito, mas a partir daí estivemos um bocadinho às aranhas. Foi giro e desafiante, mas tudo isto dá um toque muito pessoal ao projecto, que é mesmo muito pessoal”, garante José Maria.
Sete anos e muitas aventuras depois, entre Paris e Champagne, o casal decidiu voltar ao ponto de partida, precipitado também pelo nascimento da filha, em 2022. “Foi por ela que voltámos.” E é por ela que não esticam horários nem abrem mais dias do que aqueles que lhes assegura a pequena normalidade. “Nós adoramos aquilo que fazemos e não queremos fazer outra coisa, mas também temos de nos respeitar a nós próprios. E mais vale fazer dez, quinze jantares e fazê-los muito bem, ou o melhor possível, do que estar a fazer trinta e não ter condições para os fazer.”
É José Maria quem está na cozinha, enquanto Cláudia controla a sala. A carta é curta e o sonho até seria trabalhar a partir do mercado, sem pratos fechados. “Nós abrimos numa sexta-feira e eu comecei a cozinhar dois dias antes e já não cozinhava há dez meses. O menu de hoje só o finalizei às seis da tarde”, diz. “Eu sou mais criativo ao ir à praça, ao ver as coisas. É assim que o puzzle se começa a montar.” Chama-lhe “cozinha de mercado”. “Em França trabalha-se muito assim. Cheguei a trabalhar num restaurante em que todos os dias íamos à praça ver o que havia para definir os pratos. É duro, mas é muito giro.”
Apesar de não ser assim que está a trabalhar, é a teoria que tem aplicado. “Desde que abrimos há três semanas – parece que foi há três meses – que só dois pratos é que se mantiveram. É assim que queremos continuar”, garante José. Ainda assim, já se começam a notar uns bestsellers como a couve-flor na brasa, com molho de frango assado e pele de galinha (9€) ou o sarrajão com funcho e laranja dalmau (10€).
Em muitos pratos, há vestígios dos anos passados em França, em que o casal tratou sempre de preservar muitos dos ingredientes, fosse através de conservas caseiras, fermentações ou outras experimentações. O sarrajão, por exemplo, leva um molho de cereja com dois anos. Já a couve coração leva shiitake e nduja de javali (9€), uma pasta feita habitualmente com salame de porco picante. “Eu gosto muito de preservar sabores do Verão para implementar no menu de Inverno. Parte do Ciclo também é brincar com o ciclo da natureza. É o que se faz muito nos países nórdicos, onde os Verões são muito curtos e por isso eles produzem e preservam para consumir depois”, contextualiza.
Também por isso, o menu de degustação (55€/seis momentos) é a experiência completa. Há pratos que estão na carta, há outros que podem surgir no momento. Todos eles num limbo, onde se sente a influência da cozinha francesa, sem se perder o sabor português – veja-se o cachaço de porco preto da Laborela, com feijão e acelgas (24€). “Eu gosto muito, e sempre gostei, de pegar na nossa tradição portuguesa e brincar um bocadinho com ela”, revela, ao mesmo tempo que destaca a carta de vinhos. Afinal, José e Cláudia não vieram da zona de Champagne com as malas cheias de conservas apenas. “Fizemos muitos amigos produtores de champanhe e por isso trouxemos coisas muito especiais que não existem em Portugal”, afirma, confessando que neste primeiro mês tem sido esse até o principal chamariz.
“A malta sabe que nós temos coisas diferenciadas em termos de bebida e acabam por vir curiosos e depois ficam surpreendidos com o espaço e com a comida, o que também me retira um bocadinho de pressão porque ninguém sabe quem é que eu sou e eu vivo muito bem com isso”, brinca. E afiança: “Estamos a falar de termos aqui os melhores champanhes do mundo”.
Largo das Olarias 42 (Mouraria). 963 691 234. Qui-Sáb 19.00-00.00. Dom 12.00-15.00
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