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Na nova grande aposta da HBO, o medo não é só fantasia

‘Lovecraft Country’ mistura terror, fantasia, drama familiar e referências pop numa série infernal sobre o racismo. Estreia-se nesta segunda-feira.

Hugo Torres
Escrito por
Hugo Torres
Director-adjunto, Time Out Portugal
Lovecraft Country, HBO
HBOLovecraft Country, HBO
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Sentado na parte de trás do autocarro, Atticus Freeman vai sonhando. Sonha-se um destemido herói numa das histórias de ficção científica de que tanto gosta. Atticus, ou “Tic”, é um leitor dedicado. O seu escritor preferido é H.P. Lovecraft, mestre do sobrenatural e prolífico autor de pulp fiction no início do século XX, e é num desses universos narrativos criados para sublinhar a fragilidade da espécie humana que este veterano da Guerra da Coreia vai cruzando as estradas do Sul dos Estados Unidos, de volta à sua Chicago natal. Quando acorda, o autocarro avaria e vê-se de novo na condição subalterna que a América segregada dos anos 1950 lhe reserva: não há lugar para ele na carrinha que vem socorrer os passageiros e terá de seguir a pé até à cidade mais próxima. Ele, tímido mas resiliente, não protesta. Avança. Tem de ir à procura do pai, Montrose, que está desaparecido.

Lovecraft Country, o título da série que a HBO estreia na segunda-feira, 17 de Agosto, reporta-se tanto ao território literário em que o autor de O Despertar de Cthulhu se movia, como à região americana em que este viveu – a Nova Inglaterra. Entre um e outro, o racismo. O racismo da época mas também o que o próprio Lovecraft advogava com fervor. É nessa tripla direcção que a showrunner Misha Green (Underground) leva esta adaptação televisiva do romance homónimo de Matt Ruff, publicado há escassos quatro anos. Fá-lo com os produtores executivos Jordan Peele (Óscar para melhor argumento original por Foge), que partilha com Green a paixão pelo género dos filmes de terror, e J.J. Abrams (Perdidos, Star Wars: Episódio VII – O Despertar da Força), a quem é fácil apontar o dedo pelas cenas decalcadas de Os Goonies ou Indiana Jones e a Última Cruzada.

Atticus (Jonathan Majors, Da 5 Bloods – Irmãos de Armas) parte à descoberta do pai (Michael Kenneth Williams, The Wire) numa viagem de carro aparentemente trivial com o seu tio George (Courtney B. Vance, American Crime Story: O Caso de O.J.), também ele um bibliófilo e criador do The Safe Negro Travel Guide (versão ficcional do livro de Victor Hugo Green), e com uma amiga de infância, Leti (Jurnee Smollett, que Misha Green trouxe do elenco de Underground). Além de Montrose, contam encontrar em Nova Inglaterra um pretenso e sonegado direito de nascença de Atticus. A estrada até lá é, no entanto, cheia de atribulações: de inevitáveis xerifes supremacistas a monstros fantásticos e vampirescos, terminando numa sociedade secreta de feitiçaria investida num objectivo divino – regressar ao Jardim do Éden. É aí que se encontram os branquíssimos, os loiríssimos William (Jordan Patrick Smith, Vikings) e Christina Braithwhite (Abbey Lee, Mad Max: Estrada da Fúria), assim como o pai desta e anfitrião, Samuel Braithwhite (Tony Goldwyn, Scandal).

Não são os “grandes feiticeiros” do Ku Klux Klan. Os Braithwhite têm-se em demasiado boa conta para partilharem actividade com a ralé branca – o que volta a remeter para H.P. Lovecraft, que nos seus anos finais progrediu do racismo comum para um elitismo anglófilo que reduzia ainda mais o círculo da raça superior. São os escolhidos. Os mais empenhados perscrutadores do santo graal: a vida eterna. É com esta família que esta série de dez episódios, a grande aposta da HBO para a rentrée, se torna tentacular e se mostra em toda a sua plenitude. Um crescendo que exige resiliência aos espectadores mais impacientes, que terão de passar por vários géneros para aqui chegar – mistério, thriller e terror a tocar o gore –, num caminho caminho cheio de referência culturais, do Drácula de Bram Stoker à música de Cardi B, Frank Ocean ou Marilyn Manson.

Gil Scott-Heron e James Baldwin, vozes maiores da luta pelos direitos civis norte-americanos, juntam-se à banda sonora para “comentar” a América dos anos 1950, in loco, com trechos que só surgiriam muito mais tarde (a forma que a showrunner Misha Green encontrou para nos dizer que o momento, para os negros, é o mesmo desde que o primeiro escravo pousou os pés no Novo Mundo, como afirmou recentemente ao The New York Times; não há anacronismos porque não há avanços nem recuos). O racismo é o pano de fundo inescapável de toda a série. Não surpreende por isso que, entre bestas multioculares e feiticeiros megalómanos, seja nas cenas de perseguição policial que os níveis de ansiedade disparam. Em particular numa que se faz lentamente, quando Atticus, George e Leti têm de sair, até ao momento do pôr-do-sol, de uma cidade com recolher obrigatório para negros, e o xerife segue atrás deles à espera que falhem a saída ou ultrapassem o limite de velocidade para os deter. O terror torna-se tangível e obriga-nos a tirar novas conclusões sobre o privilégio branco.

HBO. Seg (Estreia T1)

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