[title]
Desdémona morre às mãos do marido Otelo, cego pelo ciúme e convicto da traição da sua mulher. Carmen morre às mãos de José, depois de este perder o amor dela para outro homem. Lakmé suicida-se, ingerindo uma flor venenosa, depois de assistir à partida do seu amado. Tosca sobe a um parapeito e mergulha para a sua morte, após falhar em salvar o marido de um fim trágico. Esfaqueadas, envenenadas ou atiradas de um precipício, a ópera está cheia de mulheres a cair mortas por uma e outra razão. It’s Not Over Until The Soprano Dies explora este imaginário ao recriar finais de óperas em que morrem personagens femininas. Está em cena no São Luiz, entre 12 e 14 de Janeiro.
A cortina ainda bate no chão quando o Prólogo começa a apresentar o espectáculo que se segue. “Ouvireis os gritos de dor, os uivos de raiva e risos cínicos”, salientando que no palco padecem pessoas que em nada diferenciam das que estão sentadas na plateia. Finda a apresentação, a cortina sobe, revelando um cenário mobilado tal e qual uma casa. Aqui, na sala de ensaios da Comuna, não há uma cortina e, desde o início, tudo está à vista. Ao fundo, uma cozinha e uma mesa de jantar; ao centro, um sofá de napa preto e uma pequena mesa; de um lado, uma casa de banho e um quarto singular; do outro, uma cama de casal.
Num cenário pouco usual para uma ópera, tipicamente apresentada com grande pompa e circunstância nos teatros do século XIX, a peça cria um paralelo entre as árias cantadas e a realidade do nosso quotidiano. “Não me interessava recriar um contexto particular onde cada uma daquelas obras tiveram lugar, portanto teria que encontrar um sítio onde aquilo fosse possível existir e o sítio foi o nosso, o mundo tal como o conhecemos agora”, explica o actor e encenador Jorge Andrade, também director da Mala Voadora, companhia de teatro responsável pela criação da peça. “É como aquelas personagens que vivem ali e que se expressam daquela maneira, mas não deixam de ser de carne e osso”, realça.
Entre La Traviata, Suor Angelica, Otelo e La Juive, são 30 as óperas das quais são recriados os finais. Ao contrário das originais, não há que esperar pelo fim para a tragédia suceder. A um ritmo alucinante, as sopranos morrem uma a uma, e os seus corpos, representados por bonecas em tamanho real, jazem no chão, no sofá, na cama, um pouco por todo o lado, até ao fim da peça. A quantidade e intensidade, algo absurdas, das mortes das personagens femininas surgem com o intuito de perceber se há “uma espécie de constatação e alguma revolta sobre como as mulheres são tratadas na ópera, ou se continua a haver ainda um deleite com o virtuosismo e a beleza daquelas composições musicais”, continua o encenador.
Na recriação de Salomé, a actriz, sentada no sofá, folheia um livro de história da arte, enquanto é rodeada pelas restantes personagens. Numa sequência frenética, ela é esfaqueada e morre. Em La Gioconda, não há nenhuma luta nem há quem fuja, o suicídio de uma outra soprano ocorre sem causar agitação. Na cozinha, um grupo de amigas procede a fazer mojitos. A forma vertiginosa em que as mortes acontecem em palco torna “impossível fugir ao facto de que elas estão a morrer”. A peça enfatiza ainda como “as mulheres são mortas e a vida continua”, sem que este acontecimento se imponha à vida dos demais.
No fim de Tosca, um dos homens morre às mãos dos outros e, ao contrário do que acontece com as mulheres, este é rapidamente socorrido. As personagens femininas limpam o seu corpo, antecedendo o momento em que se dá a sua marcha fúnebre, ao som de "Siegfried Funeral", de Richard Wagner. Num mar de corpos de mulheres, deixados ao abandono, o cuidado e preocupação que envolvem a morte deste homem “ajuda a sublinhar o papel das mulheres no meio disto tudo” e também “o tratamento que as mulheres são votadas na ópera”.
Neste espectáculo, que traz à luz a concepção dos finais de várias óperas e como estas vivem do sacrifício das mulheres, o encenador quis “explorar [a ópera] tal como existe e perceber emocionalmente, e do ponto de vista dramatúrgico, o que é que significa colocá-las numa sequência, tirando-lhes do seu contexto, das histórias de onde elas vêm e o que é que resulta.”
Com direcção musical e arranjos do compositor e maestro Nuno Côrte-Real, It’s Not Over Until The Soprano Dies conta com um acompanhamento sinfónico da Orquestra Metropolitana de Lisboa. As árias, sequenciadas numa lógica musical e numa lógica da ocupação do espaço, são cantadas em diferentes línguas, sendo que a peça inclui a legendagem traduzida dos libretos.
São Luiz Teatro Municipal. 12-14 Jan. Sex-Sáb 20.00 Dom 17.30. 12€-15€
+ Se as peças de teatro esgotam, porque é que não há mais?
+Hot Clube de Portugal promove concertos de Jazz no Parque Mayer