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Numa viagem ao México, o pedido de uma amiga levou António Jorge Gonçalves a comprar lápis brancos – e ele guardou um para si “como quem guarda uma bizarria”. Mais tarde, por curiosidade, comprou um caderno de folhas pretas na Papelaria Fernandes. Não tocou nem num nem noutro durante vários meses. “Um dia percebi. Aquelas páginas são como uma sala às escuras: precisam de ser iluminadas para revelarem o que lá está contido. E o lápis branco pode ser a minha vela”, conta o ilustrador. Agora, lança Desenhar do Escuro, um livro feito de luz e sombra, que reúne uma selecção atenta de diferentes fragmentos da realidade.
“É um livro especial para pessoas especiais”, diz António, confessando tratar-se de uma edição de autor com tiragem limitada a 250 exemplares, todos assinados e numerados. São 166 páginas e 82 desenhos, que fixam em papel paisagens urbanas, anónimos nas ruas, clausuras domésticas, deambulações pela natureza e até um auto-retrato. De fora, ficam mais de 200 registos, que o ilustrador trabalhou entre 2020 e 2021 com recurso a um processo de inversão – usado na xilogravura, por exemplo –, no qual se desenha aquilo que está a branco, iluminado, em vez daquilo que está a preto, na sombra. Para o adquirir, é necessário fazer um pedido através de e-mail (desenhardoescuro@gmail.com).
Na exploração desta linguagem gráfica que lhe é inédita, António Jorge Gonçalves aproveitou o facto de a pandemia ter forçado o mundo a parar para se reencontrar com o tempo e a liberdade de se sentar e, no fundo, “de experimentar coisas”. Ao início, sentiu-se particularmente inexperiente por não estar habituado a trabalhar com lápis. “Sou um desenhador mais do marcador, um daqueles riscadores com um traço presente, constante e forte”, partilha. “Tem a ver com gostar de desenhar rapidamente, mas o lápis é mais acerca da gradação, de ter o traço mais visível ou menos visível, e é também um processo mais lento por causa do tipo de imagens que comecei a construir.”
O confinamento tornou as idas à rua em episódios do National Geographic, diz António. De repente deu por si a olhar para o mundo como se fosse a primeira vez. Mas essa estranheza (de ver, por exemplo, as ruas da Baixa lisboeta tão vazias) inspirou-o a interpretar as suas visões da cidade, da natureza e do outro como manchas de Rorschach. “Fui percebendo que era quase como se eu fosse fazendo os desenhos aparecerem do escuro devagarinho, como se estivesse iluminando. Depois, acho também que o travão que houve no trabalho fez com que passasse a ganhar uma noção diferente do tempo. Há desenhos que levaram uma hora a fazer. Agora, tem sido muito mais rápido, porque já estou outra vez na vida de hámster, a correr na rodinha.”
Além de diferentes perspectivas dos seus arredores, de cenas urbanas e nocturnas a quadros mais naturalistas, António Jorge Gonçalves acredita ter também registado vários dos estados emocionais vividos durante os períodos de confinamento – sem querer, foi surgindo uma narrativa, explica. “Vivemos meses sempre com este medo a pairar, do presente, mas também do futuro. E a clausura pôs-nos mais dentro dos nossos pensamentos, em vez de nos confrontar com os dos outros”, diz. “Vejo-me muito a mim e vejo-nos muito a nós [nos desenhos que fiz].”
Na sexta-feira, 8 de Outubro, o ilustrador estará na Brotéria, em Lisboa, para apresentar Desenhar do Escuro, com uma masterclass (inscrições online), que inclui um momento oficinal para elaboração de desenhos a branco sobre suporte preto. A seguir, o ilustrador irá fazer-se à estrada para lançamentos no Funchal (12 de Out), em Sintra (16 de Out), Guimarães (19 de Out), Loulé (27 de Out), Leiria (30 de Out), Lagos (5 de Nov), Porto (13 de Nov), Coimbra (17 de Nov), Braga (21 de Nov) e Almada (4 de Dez). Se não quiser perder pitada, o melhor é estar atento ao Facebook.