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Não são destroços, mas memórias. Exposição chama atenção para demolições no Segundo Torrão

“Arqueologias de Destruição” mostra o que ficou para trás das casas demolidas num dos maiores bairros auto-construídos da Grande Lisboa. Objectos foram recolhidos por crianças que ali moravam, com a ajuda de pincéis e espátulas.

Rute Barbedo
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Rute Barbedo
Jornalista
Segundo Torrão, Trafaria
Susana Santa-MartaSegundo Torrão, Trafaria
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“Há uma espécie de desdém por parte das autoridades quando acontece um processo destes. Dá-se uma ordem de despejo e pronto. Muitas vezes as máquinas chegam antes das assistentes sociais.” O enquadramento é de Susana Santa-Marta, investigadora da Universidade de Artes de Estocolmo na área audiovisual, activista e cidadã atenta às várias frentes da crise habitacional na Grande Lisboa. Por esta atenção particular, quando Susana soube que uma parte do bairro do Segundo Torrão, na Trafaria, seria demolida, aproximou-se do caso, passou "muito tempo no bairro", tentou perceber o antes, o durante e o depois. Do processo nasceu uma exposição, “Arqueologias de Destruição”, prolongada até 15 de Julho no Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC).

Quem entra na sala do primeiro piso começa por ver os destroços: uma embalagem de lixívia cortada pela metade, um cesto de bicicleta de criança, a carcaça de uma televisão, pedaços de cimento, areia e vidro. Juntam-se o fémur de um bovídeo, um bloco de calcário, pedaços de plástico, fotografias e um vídeo que mostra crianças a explicar como foi serem arqueólogas por um dia, no meio do entulho que um dia já foi as suas casas. Tudo ajuda a reconstituir a destruição das casas onde viveram 60 famílias, neste bairro da Trafaria que foi auto-construído nos anos 1970. 

Segundo Torrão, Trafaria
Susana Santa-MartaSegundo Torrão, Trafaria

É uma arqueologia porque a recolha dos objectos foi feita a partir de um simulacro de escavação, em colaboração com o Centro de Arqueologia de Almada, em que os cientistas foram as crianças que habitaram o bairro. E é uma destruição, porque Santa-Marta não gosta de eufemismos. “Não é uma mudança ou um processo de realojamento e eles não viviam em barracas. Mas são palavras que usam para pintar que a vida das pessoas está a ser melhorada. Nem sempre é assim. O lar e os pertences são tratados como se não tivessem valor, houve famílias separadas – mulheres que foram com os filhos para hostéis em Lisboa enquanto os pais ficaram noutro lado – e os realojamentos nem sempre foram cuidados. Por exemplo, uma ex-moradora com dificuldades de mobilidade [Helena Carvalho] que foi para uma casa num segundo andar. Para levar o lixo ela tem de levar uma mochila, não consegue de outra maneira”, relata a investigadora. 

63 famílias realojadas em diferentes concelhos

Nas casas que haveriam de ser demolidas viviam 63 famílias. Nove não tiveram direito a realojamento pelo facto de terem uma segunda habitação registada. As restantes foram para casas arrendadas pela Câmara Municipal de Almada (CMA) e consequentemente subarrendadas às famílias, em Almada e concelhos vizinhos. Também a isto Santa-Marta aponta o dedo, porque com a mudança de território quebraram-se laços com o local onde viviam, com a comunidade e com aspectos tão práticos como as rotinas relativas aos locais de trabalho e escolas das crianças. Contactada pela Time Out, a CMA defende, no entanto, que as famílias “tiveram, em muitos casos pela primeira vez, oportunidade de passar a viver em condições de dignidade”, e acrescenta que “este processo aconteceu sempre em constante diálogo directo com cada família”. Já Susana Santa-Marta conta que muitas relataram desconhecer o que se iria passar no Segundo Torrão até ao dia da chegada das máquinas. Outras conseguiram adiar a demolição através de providências cautelares.

Vestígios recolhidos no simulacro de escavação
Susana Santa-MartaVestígios recolhidos no simulacro de escavação

“As demolições aconteceram entre Setembro de 2022 e Maio de 2023 e o entulho esteve lá meses, com as pessoas a viverem no meio dele. Num espaço de meia hora, literalmente, foi tudo removido, no dia da visita da ministra da Habitação”, 28 de Junho de 2023, recorda Susana Santa-Marta. O motivo para demolir foi a identificação do risco de derrocada dos edifícios, pelo facto de terem sido construídos sobre uma vala de drenagem. Mas “não justificava toda aquela urgência”, defende a investigadora ou organizações como a Amnistia Internacional (AI), que também criticou a forma como todo o processo foi conduzido. "Depois de oito meses de silêncio, os moradores não entendem o motivo de a Câmara Municipal de Almada ter avançado em menos de uma semana com o realojamento", escreveu, há um ano, a organização na sua página. Na documentação do processo pela AI, "a conclusão foi a de que o município não cumpriu com as boas práticas recomendadas pela Amnistia Internacional para a prevenção de desalojamentos forçados". 

Outra das preocupações elencadas por Santa-Marta é o que irá acontecer a estas pessoas a seguir, quando terminarem os contratos de arrendamento. Sobre este tema, a CMA informou a Time Out que, “em recente reunião de Câmara, foi aprovada a proposta de renovação de todos os contratos, ao mesmo tempo que outros agregados passaram a realojamentos em habitações municipais”. Em suma, “todos os contratos relativos ao realojamento dos primeiros moradores que tiveram de sair do bairro do Segundo Torrão foram, ou estão a ser, renovados”.

O Segundo Torrão não foi demolido por completo. No bairro, subsistem habitações que estão há anos sob a ameaça da subida do nível das águas do Tejo e do mar. Em Março, não foi apenas a ameaça que ali falou, aliás. A água subiu e destruiu parte da casa de um morador, Diego Botas (numa linha mais próxima do Tejo do que o aglomerado de habitações que foi demolido). Há também relatos de inundações e de outros episódios de destruição, desde os anos 70, ali e na vizinha Cova do Vapor.

À Mensagem de Lisboa a CMA afirma que o realojamento dos moradores do bairro, aguardado há anos, está previsto na Estratégia Local de Habitação e será financiado com recurso ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), envolvendo a construção de 95 fogos.

O presente e o passado colonial

Embora o nome da exposição no MUHNAC remeta para o passado, “Arqueologias de Destruição” é a primeira exposição em que o museu universitário se debruça de uma forma directa sobre a actualidade, num processo de viragem da visão da instituição, em que a preocupação em “compreender os impactos do legado do colonialismo no presente” toma um lugar de destaque.

Vestígios do Segundo Torrão
Susana Santa-MartaVestígios do Segundo Torrão

Em 2015, o museu recebeu diferentes colecções de missões científicas às ex-colónias. “Foram 2,5 milhões de objectos”, que perfazem cinco quilómetros lineares de arquivo e que ajudam a perceber, por exemplo, como a ciência foi usada durante o Estado Novo. “Os museus têm dificuldade em lidar com o presente”, reconhece a directora, Marta Lourenço, em conversa com a Time Out. Mas o MUHNAC quer mudar isso. “Queremos que as pessoas conheçam o nome do Segundo Torrão, que queiram saber o que se passa, tenham essa curiosidade. O museu tem esse papel de envolver e incentivar as pessoas e daí, também, esta abordagem artística, mais perto do coração, e não didáctica da situação. É deliberado. A intenção é, a partir de agora, abrirmos mais a nossa relação com a comunidade. O museu está aberto”, convida a responsável.

MUHNAC, Rua da Escola Politécnica, 56. Até 15 Jul, Ter-Dom 10.00-17.00. 6€

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