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Nas ruínas desta quinta, ergueu-se o Teatro Zénite

Na antiga Quinta da Barroca, no vale do rio Trancão, Sílvio Vieira apresentou uma peça e decidiu "montar" um teatro. E não lhe faltam ideias para o espaço.

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
Teatro Zénite
© Francisco Romão PereiraTeatro Zénite
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 670 — Verão de 2024

Cá de cima, vemos o vale, o rio, a vegetação que se estende por vários quilómetros. E também um teatro. O edifício está em ruínas, as paredes aparentam estar a cair aos bocados, e até lhe falta um telhado. Mas, lá dentro, há um teatro a ser erigido. Isso vê-se nos blocos de cimento que fazem a vez de uma plateia, nos actores que lá se apresentam e no público que, junto do entulho e sujeito a levar com umas gotas de chuva, se assim o tempo o ditar, assiste a uma peça. No vale do rio Trancão, a antiga Quinta da Barroca transformou-se no Teatro Zénite, onde, haja ou não uma cortina a abrir, ou haja ou não um palco para onde subir, há um espectáculo a apresentar. E, se não for lá, os blocos de cimento podem ser movidos e pousados noutro lugar. Com eles, irá sempre o Zénite. 

Do centro de Lisboa, de carro, chegamos à Bobadela em cerca de 20 minutos. No fim de uma estrada ladeada por casas, algumas ainda a ser construídas, uma tabuleta em pedra indica-nos que estamos no sítio certo. “Quinta da Barroca”, pode ler-se ao cimo de um trilho que nos leva às ruínas do Zénite. Foi em 2023, por volta de Agosto, que o director artístico da estrutura artística outro, Sílvio Vieira, acompanhado do cenógrafo Rafael Santos, se propôs a procurar um espaço verde que servisse de lugar de apresentação da sua próxima peça. Aqui, neste vale, encontrou o palco que havia idealizado. Adquirida em 2018, a propriedade é da Casa Santos Lima, uma empresa vinícola sediada em Alenquer. Sílvio Vieira contactou a empresa, que rapidamente se interessou em ceder-lhe o espaço, tendo assim assinado um contrato de cedência do mesmo, que termina em Janeiro de 2025. “Nós, como empresa, gostamos e temos que o fazer, que é participar na vida cultural e social do nosso país, de forma directa ou indirecta, sobretudo na região onde nos integramos. A nossa região principal é a região vitivinícola de Lisboa, isto é um projecto dentro dessa região vitivinícola e, portanto, ainda mais faz sentido nós tentarmos promover ao máximo a parte cultural e social. Onde achamos que faz sentido associar, associamo-nos”, afirma Luís Almada, CEO da Casa Santos Lima.

Teatro Zénite
© Francisco Romão PereiraTeatro Zénite

A primeira peça, apresentada em Julho deste ano, veio encerrar uma trilogia de espectáculos em que o mote de cada um partia do espaço em que era apresentado e, por sua vez, concebido. A Arena (2021) e Equador (2023), seguiu-se agora ZÉNITE. O teatro partilha o nome da peça, que surgiu do facto de esta acontecer ao ar livre. “Zénite é, no fundo, o ponto que está imediatamente acima de nós e, num espectáculo ao ar livre, esse ponto estende-se ao infinito e eu achava que seria uma das maiores forças do espectáculo, este gesto de olhar para o céu. O gesto de nós estarmos a ver um espectáculo e este privilégio que é podermos olhar para cima e ver o céu, as nuvens, as estrelas ou a chuva”, diz Sílvio Vieira. Ao partir do miradouro e descendo o trilho, ligeiramente acidentado, chegamos então à antiga Quinta da Barroca. Rodeada de vegetação, a construção mantém-se em pé, mesmo depois do que já perdeu, como o telhado. Quando entramos, a pedra ainda sobrevive sob a forma de um tanque, ou de degraus que dão para um segundo andar. O entulho ocupa um palco improvisado.

Sílvio VIeira, director artístico da estrutura artística outro
© Francisco Romão PereiraSílvio VIeira, director artístico da estrutura artística outro

O Teatro Zénite nasce precisamente da vontade de apresentar diferentes espectáculos em diferentes lugares, o que para Sílvio é uma parte importante da sua criação artística. Mas não só. A utilização deste espaço chega ainda de uma necessidade sentida no panorama cultural e artístico da cidade. “O Zénite e esta trilogia surgem em resposta não só à ausência de espaços para trabalhar, mas também à ausência de programações mais compridas. Este tipo de espectáculos mais site-specific, ou encontram uma forma de serem apresentados mais dias, ou então é um esforço sem recompensa.” E, mais do que uma permanência por tempo indefinido nestas ruínas, importa-lhe criar um espaço que possa servir uma programação construída com base nas suas próprias regras. “No nosso panorama cultural e, sobretudo, no teatral e nas artes performativas em geral, aos espectáculos não é dado tempo para crescerem dentro da comunidade.”

Teatro Zénite
© Francisco Romão PereiraTeatro Zénite

Porém, há sempre um mesmo problema que se levanta: falta de financiamento. No caso do Zénite, Sílvio contou com a co-produção do Teatro Nacional D. Maria II, o que tornou possível a concepção do projecto. Além do espaço, por si só, não apresentar as características necessárias para lá se desenvolver trabalho artístico, também não reunia as condições que permitissem receber público. Inclusive, os ensaios no local só foram possíveis, em parte, porque a equipa teve a oportunidade de alugar uma pequena casa, localizada junto às ruínas da quinta, para servir de apoio e de camarim. “Pelo menos para o espectáculo que criámos, dependemos muito de uma estrutura como o Teatro Nacional, para nos garantir meios de electricidade, iluminação, de som para o espectáculo, o que faz com que ele seja, por um lado, muito caro e, por outro, que nós tenhamos de pensar duas vezes numa futura utilização daquele espaço.”

Teatro Zénite
© Francisco Romão PereiraTeatro Zénite

A estes desafios, que se impõem caso haja uma futura utilização do espaço, junta-se o facto de o Zénite se situar numa propriedade privada e, por isso, haver uma incerteza em relação à possibilidade de ali permanecer, já que o contrato com a Casa Santos Lima, assim que terminar, não prevê uma renovação automática. Segundo Luís Almada, “durante os meses que eles nos pediram para usar aquilo, nós não íamos intervir lá fisicamente em nenhum momento, porque ainda não estamos nessa fase e, portanto, achámos que não havia motivo nenhum para não nos associarmos a este projecto.” Por outro lado, o CEO assegura que “aquilo faz parte de um activo que nós temos, da empresa, para onde temos uma série de projectos que estão em avaliação de forma a potenciar ao máximo o espaço e a sua envolvente.” Desde que não colida com a agenda da própria empresa, a renovação do contrato é algo a considerar, conclui.  

Teatro Zénite
© Francisco Romão Pereira

Neste sentido, por não ocupar um lugar público, por um lado, e pelas despesas que acarreta, por outro, o Teatro Zénite foi sempre pensado numa lógica em que pudesse ser instalado em qualquer sítio. Daí a ideia de criar uma plateia, composta por 35 blocos de cimento a partir do entulho proveniente das obras de requalificação do D. Maria II. Mais do que meros blocos de cimento, estes trazem consigo um simbolismo e um significado singulares. “Esta plateia tem o Teatro Nacional incorporado dentro dela e permite-nos prolongar o projecto até onde nós quisermos. Se nós quisermos levar esta plateia para outro país, podemos levá-la. Se nós quisermos levá-la para uma praia qualquer na Costa Vicentina, podemos levá-la, ou seja, o Teatro Zénite continua, continua além da possibilidade de termos de sair dali”, diz Sílvio Vieira. 

Contudo, por agora, mantém-se a vontade de permanecer neste espaço. Em breve, a associação cultural outro irá candidatar-se, com a antiga Quinta da Barroca como base do seu trabalho, a um programa de apoio. “Vamos candidatar-nos à DGArtes já com um profundo conhecimento do que aquele espaço necessita. Nesta candidatura, já vamos incluir, se calhar, verbas para segurança, um gerador, material técnico, para nos permitir ter ali um plano de actividades interessante.” 

Teatro Zénite
© Francisco Romão Pereira

Para o futuro, não faltam ideias. Uma delas é um festival, pensado para o Verão, que dará palco a artistas emergentes, que, por falta de oportunidades ou por outra razão, não encontram lugar nas instituições culturais e artísticas já estabelecidas. Segundo Sílvio Vieira, como artista e criador, a utilização deste tipo de financiamentos públicos torna-se “um privilégio e uma responsabilidade”, já que é “devolver esse investimento que a população portuguesa faz para apresentar um objecto cultural. Isso não quer dizer que não tenhamos direito à falha, isso temos sempre.” ZÉNITE é exemplo disso. A peça deveria ter estreado a 27 de Junho, mas, por causa da chuva, a estreia teve de ser adiada. Afinal, o Teatro Zénite é um espaço ao ar livre, a céu aberto, que, por isso, está sujeito a diversos elementos naturais e meteorológicos que, nem sempre, jogam a seu favor. Por outro lado, também são estas características que podem tornar estas ruínas um lugar de interesse, não só para o criador, mas também para o público e para quem vive na zona envolvente do vale. “Estamos a contribuir para esse esforço, para que aquele sítio se torne um sítio público, um sítio onde as pessoas podem ir e podem usufruir, e acho que isso é uma coisa que as pessoas sentem e, portanto, nunca nos iriam receber mal”, reconhece o encenador.

Rua Guerra Junqueiro 1 (Bobadela)

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