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Ainda o Inverno não tinha começado e um grupo de voluntários, sem conhecimentos de carpintaria, juntava-se todos os sábados na Horta do Alto da Eira, freguesia da Penha de França, para construir um abrigo onde coubessem bancos, um quadro de lousa e curiosidade. Seria ali que, nos dias de chuva, as crianças da nova horta-escola de Lisboa se poderiam abrigar e aprender nomes e ciclos naturais de diferentes espécies botânicas, a importância dos insectos na biodiversidade ou como aproveitar a rama da cenoura para fazer esparregado. O abrigo ainda não está pronto, mas o projecto A Horta é Uma Escola já arrancou, até porque o objectivo é que a maior parte das aulas, sobre pensamento e práticas ecológicas na cidade, decorram no exterior, em contacto com a terra.
Financiado pelo programa BIP/ZIP, o projecto de erguer uma escola informal numa horta comunitária de Lisboa – neste caso, a horta dinamizada pela Associação Regador, tomou forma a 19 de Fevereiro, com a chegada dos primeiros grupos de alunos do primeiro ciclo de duas escolas públicas da zona. Aqui vão aprender "a trabalhar em equipa, construir algo em conjunto e também perceber as diferenças no resultado se tivessem tentado fazer o mesmo isoladamente", conta à Time Out Maria Freitas, da Regador. Numa segunda fase, as partilhas serão sobre o consumo alimentar, aprendendo-se conceitos como diversidade, sazonalidade, versatilidade e a confecção de alimentos sem desperdício. "Mas tudo isto pode ajudar a pensar o consumo a outros níveis e também outro tipo de conceitos, como saber esperar", continua. A terceira fase está direccionada para saberes como produzir energia e ser auto-sustentável a partir de recursos naturais, como o sol ou o vento (em coerência com os sistemas adoptados pela Horta do Alto da Eira, onde um moinho e um painel solar são duas das fontes de alimentação da actividade diária). "Estamos a aproveitar os recursos que temos na horta e percebemos que este é um sítio com um potencial educativo enorme", conta a fundadora da associação.
A partir de Abril, a horta-escola abre-se a outros públicos. "Vamos arrancar com cursos técnicos direccionados para alguns territórios de Lisboa, identificados como tendo necessidade de intervenção e em parceria com diferentes associações." As áreas a abordar serão a agricultura e a culinária, na ligação que lhes é original. "A ideia é capacitar para a agricultura" no contexto urbano, ou seja, dar ferramentas para que se torne possível e simples perceber que, mesmo num bairro de apartamentos e pouco espaço reservado à terra, "é possível produzir o próprio alimento". Virão, ainda, os Grupos de Saberes, em que os fazeres artesanais, como técnicas de carpintaria ou olaria, ocuparão o centro dos dias na horta.
Tudo isto acontece até Setembro, mas a vontade da Regador é, "talvez ainda este ano", alargar o "plano escolar" a todos os interessados, tornando acessível ao tecido urbano, de forma transversal, a aprendizagem do pensamento e práticas ecológicos e responsáveis, bem como o reforço da autonomia dos cidadãos em contexto urbano (não somos obrigados a ir ao supermercado para tudo nem a alimentar modelos pouco sustentáveis).
Reorganizar o ritmo da cidade
A Horta do Alto da Eira, que cresceu em 2021 pelas mãos da Associação Regador e das dezenas de cooperantes que foram aparecendo pelo caminho, poderia ter-se ficado pela transformação de um terreno baldio num pólo de produção de alimentos numa zona da Penha de França que é considerada território de intervenção prioritária. Mas, além das couves, batatas, favas, tomates e morangos, a Horta tem também uma programação sócio-cultural variada (há concertos, cinema ao ar livre ou leitura de histórias infantis) e agora avançou para a oferta educativa. E isso acontece porque está tudo ligado.
Na visão da associação, as alterações climáticas e a forma como vivemos hoje são o motor da acção. O presente e o futuro são "desafiantes" e isso obriga a "reorganizar o funcionamento do tecido urbano", acreditam. É preciso alterar "padrões de consumo, partilhar tempo, informação, conhecimento e recursos, favorecer a experimentação comunitária, e principalmente capacitar e educar para uma visão capaz e eficiente, com uma aproximação à origem e ao cultivo do alimento, a técnicas artesanais acessíveis, e ao necessário estreitamento de laços comunitários", lê-se na descrição do projecto A Horta é Uma Escola.
"A nossa associação construiu a Horta Alto da Eira e acreditamos que o projecto tem mostrado como espaços públicos dedicados à prática da agricultura colectiva, bem desenhados, ajudam as comunidades a subsistir mas também a serem um ponto de encontro, diminuindo o isolamento e exclusão social, com franca adesão de toda a cidade", defende a associação. Desde 2021, a experiência tem provado, acreditam, que a convivência com a natureza e a satisfação que essa ligação traz "é-nos inata e precisa de ser recuperada e alimentada, com o devido respeito e tempo". Como sublinha Paulo Torres, também da associação Regador, "o espaço público não tem de ser uma esplanada ou um pedaço de relva; pode ser uma horta, um lugar onde se produzem alimentos dentro da cidade", e ainda uma resposta à necessidade "de estar em comunidade, de voltar a pôr as mãos na terra e de andar mais devagar", complementa Maria Freitas. Aqui está a Horta a ensinar isso.
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